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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. MÚCIO LEÃO

MEUS Senhores,

Aqui estou, porque me chamastes. Mas, se me chamastes, foi porque solicitei o vosso apelo. Sou, na vida, apenas escritor. Sempre o fui. Sinto que o hei de ser através de toda a existência. Se há, portanto, em meu país, uma instituição que congregue os escritores, a ela devo e quero pertencer.
Não procureis descobrir, nestas palavras, um documento de vaidade estulta. Bem reconheço o nada que sou. Mas sei, também, que há aqui lugar para todos, ainda para os mais modestos. Não vos posso prometer a radiação do talento, a solidez da sabedoria. Uma cousa, porém, vos prometo: é a boa vontade na colaboração que hei de dar aos vossos trabalhos, o entusiasmo confiante do soldado que, anônimo, combate na fileira. Esse soldado sabe, sem dúvida, que o destino jamais lhe dará o fulgor das estrelas do generalato... Mas, ainda assim, sorri, deslumbrado, para aqueles que souberam conquistar essas estrelas. E, sendo obscuro, exalta-se na glorificação dos que as merecem.

“Homem, símbolo da eternidade aprisionado no tempo, não são teus trabalhos – todos mortais, infinitamente pequenos, o mais importante dos quais não é talvez maior do que o mínimo deles – senão somente o espírito com que realizas, que pode ter algum valor e alguma duração!” – Isto exclama Carlyle, em palavras de consoladora sabedoria. E se quisermos buscar nos livros santos a exaltação dos trabalhos dos humildes, havemos igualmente de encontrá-la.

Lembro-vos, por exemplo, aquela piedosa lenda que narra a história do jogral de Nossa Senhora. Era um pobre homem, que não tinha riquezas, nem letras, nem talvez sabia dizer as orações. De seu, só possuía a arte grotesca de dar saltos. Pois era essa a maneira que ele tinha de glorificar a Virgem que idolatrava. Diante da imagem de Maria, punha-se a fazer as suas cabriolas. E fazia-as tantas vezes, com tanto entusiasmo de amor, que, ao fim, cansado, caía, desfalecido, sobre o solo. E a lenda informa que, comovida pela oferenda modesta, a Virgem descia do altar, e vinha beijar a fronte emperolada de suor do seu jogral.

Essa lenda é cheia de significações. Ela indica que também o trabalho dos humildes tem beleza e valor, desde que tenha sinceridade.

A ARTE E A PRIMEIRA PESSOA

Estou certo de que o hábito de falar de si próprio está entre as cousas mais antipáticas que um escritor pode fazer. Somos muito ingênuos em nossa vaidade, e chegamos facilmente a crer que constituímos o centro do mundo. Quantos de nós não acreditarão que é por sua causa que giram as estrelas nos espaços, que foi por sua causa que a criação toda se fez!

Esse hábito de falar de si é nocivo e perigoso. Em uma página de evocação, refere Gide que, pouco depois do famoso processo de Londres, foi procurar Wilde. O escritor inglês estava a findar os dias. Não havia perdido, na prisão, o fulgor do espírito, nem aquela graça que iluminava tudo o que lhe vinha da alma ou lhe nascia no cérebro. Os dois amigos falaram de mil assuntos, das coisas felizes ou melancólicas da vida, do sofrimento e da arte. Por fim, Gide ergueu-se para a despedida. E, ao dar-lhe a mão para o aperto fraternal, Wilde disse: – “Ouça, meu caro amigo... Quero que você me faça uma promessa...” E, depois de se referir ao aparecimento recente de Les Nourritures terrestres: – “É um livro muito bom... muito bom... Mas... prometa-me: agora nunca mais escreva – Eu...” Como percebesse que Gide o não compreendera, acrescentou: – “Em arte, você bem sabe, não existe a primeira pessoa...”
Eis o conselho de Wilde. Esse conselho era, talvez, ainda, uma forma de reação. Era a reação inconsciente contra a Inglaterra, cujo idioma levou até à obsessão das maiúsculas a tirania da primeira pessoa.

Seja como for, o hábito de falar de si é um mau hábito. Absolvem-me, porém, as circunstâncias excepcionais deste dia. Um discurso de recepção de Academia é como um exame de consciência literária.

Perdoai-me, pois, se vos digo alguma cousa de mim.

HUMILDADE ESPIRITUAL

Bem sei que as Academias são as vítimas constantes da malícia humana. Ser-nos-ia fácil, se quiséssemos tentar o trabalho, organizar uma pitoresca antologia de epigramas; e nessa antologia veríamos bem refletido o pouquinho que somos e o pouquinho que valemos.

Mas a verdade é que, não obstante todas as chufas e todos os doestos, as Academias vivem e prosperam por toda a parte. E em todos os países vão-se criando institutos dessa natureza, aos quais, como à Academia Francesa, como à Academia da Itália, como à Academia da Espanha, como à vossa Academia, cabe a tarefa de proteger um patrimônio precioso de cultura e gênio, cabe o dever de zelar, no meio de mil transformações inevitáveis, por uma cousa que deve ser una e eterna: o espírito de um povo. No Brasil vós já tendes evidenciado essa faculdade de conservar, entre transformações às vezes perigosamente rápidas, o patrimônio da tradição inviolada. Comparai, por exemplo, a solidez que conservais entre as borrascas que têm agitado a nacionalidade, com a precária resistência que a essas forças desencadeadas têm podido opor as instituições e as corporações de natureza política; e vereis que é convosco que está a segurança das tradições brasileiras.

Esse grande papel – o de ser o abrigo em que possam remanescer as idéias e existir, tranqüilas, as formas, – é que eu reivindico para vós, meus Senhores. E foi porque o sentia, e porque ambicionava colaborar convosco nessa tarefa útil, que desejei vir para a vossa companhia. Foi por ele que vos solicitei a honra de sentar-me ao vosso lado.

Não acrediteis que me tenha movido algum impulso de ambição descabida, ao volverem-se os meus olhos para o portal de vossa Casa. Não no acrediteis. Todo aquele que ambiciona uma Cadeira de Academia comete um ato de humildade espiritual. O gênio é, por sua natureza, áspero e solitário. Ele caminha isolado, e em si mesmo encontra a sua força e o seu calor. Nós outros, aqueles que sabemos medir o nosso limitado poder e sondar o nosso limitado horizonte, nós é que sonhamos com o grupo e a companhia. As águias voam solitárias; as andorinhas é que voam em bando.

VOCAÇÃO LITERÁRIA

Escritor sempre fui... disse-vos há pouco.
E, realmente, Senhores, no mais fundo das minhas reminiscências, vejo-me solicitado pela força da irresistível vocação que hoje me trouxe até aqui. Adolescente, o meu divertimento favorito era escrever versos, a minha preocupação predileta era compor páginas de prosa. Uma pequena coleção de alguns volumes foi elaborada desse jeito, pelo menino cheio de sonhos, e, ai de mim, cheio já das angústias da criação literária. Muito desses trabalhos eu os guardo ainda hoje. São como velhos túmulos familiares, em que dormem os restos do sonho de um amigo distante e inocente. É natural que eu os ame.

Remontando a esse tempo, no qual eu não teria mais de treze anos, encontro as minhas primeiras ambições de vir a ser um dia acadêmico. Aquela era a fase em que, dirigido pelo incomparável mestre que foi João Ribeiro, aparecia, no Rio, todos os anos, o Almanaque Garnier. Era, como sabeis, uma publicação preciosa, cheia de informações científicas e literárias. Entre os assuntos que habitualmente acolhia, João Ribeiro, punha sempre a Academia Brasileira. Notas, informações, fotografias de acadêmicos, ali surgiam. Longe, no meu quarto de estudante, eu recortava essas notas, essas informações, essas fotografias. Cheguei a organizar, assim, uma galeria interessante. Quase vos digo que consegui antecipar de alguns anos o trabalho de elaboração do Anuário Acadêmico, que hoje publicais.

Para esse entusiasmo infantil pela Academia creio que contribuíram três elementos. Foi, primeiro, a leitura das Páginas Escolhidas da Academia Brasileira. É uma excelente antologia, organizada ainda pelo benemérito Confrade, cujo nome tive há pouco a honra de declinar. Li-a ainda nesse primeiro alvorecer das impressões espirituais, nessa révora da imaginação em que tudo é claridade, em que tudo se grava para sempre. Foi ali que primeiro encontrei a alma estrelar de Raimundo Correia. Foi ali que primeiro compreendi a arte sutil de Afonso Arinos. Foi ali que primeiro ouvi ressoar a lira cheia de ternuras e harmonias de Olavo Bilac. Foi ali que primeiro amei a sensibilidade delicada, sinuosa e diluída em amarguras de Machado de Assis.

O segundo elemento que me trouxe o interesse pela Academia foi o Canaã de Graça Aranha. Lembro-me do exemplar desse romance que existia em minha casa. Alguém, entusiasta do escritor, lera-o antes de mim. E, para fixar a sua admiração, marcara a lápis as margens do livro. Isso me tirava um pouco o sabor da leitura. Mas, ainda assim, eu me embriagava de delícias ao ouvir as divagações filosóficas de Milkau e Lentz, embalava-me num amor comovido por Maria. E ainda hoje a música do estilo daquele escritor prodigioso canta, sonora, em minha sensibilidade.

O terceiro elemento de minha vocação acadêmica foi Joaquim Nabuco. É ele o grande homem da minha terra, o herói belo, generoso e legendário do meu povo. Comove-nos, a todos nós, olhar a figura clara desse Apolo, filho dileto da aristocracia, que se desfez de todos os privilégios da sua classe e desceu até às senzalas podres onde agonizavam os negros. E desceu para amá-los, e desceu para consola-los, e desceu para redimi-los. Há, na Legenda Áurea, uma figura singularmente piedosa e doce. É a de São Cristóvão. Forte, destemido, hercúleo, formoso, Cristóvão desdenha da glória e renuncia às ambições brilhantes. Por amor à humanidade, entrega-se a um mister humilde: vai morar à margem de um grande rio, para ajudar os viajantes que precisarem de atravessá-lo. Apoiado ao bordão, toma nos ombros de gigante todos os peregrinos que querem ir para a outra margem da corrente. Em minha imaginação, eu vejo Nabuco feito uma espécie de São Cristóvão do Brasil. Foi ele o gigante benfeitor que, tomando aos ombros possantes a raça negra, a conduziu da margem tormentosa da escravidão até à margem resplandecente e florida da liberdade.

MEU PAI

Quando comecei a sentir a vida e a compreender as coisas, a atmosfera que me cercava era de ardente amor por Joaquim Nabuco. Perdoai se, neste momento, interrompo o fio da minha oração, para evocar a figura de um homem que nunca esteve entre vós, que viveu no alheamento de todas as ambições e de todos os sonhos de glória, mas que fez da vida o ininterrupto aperfeiçoamento do trabalho e da cultura.
Meu pai, Senhores, sempre viveu afastado de quaisquer competições políticas, todo entregue à encantação infinita dos seus trabalhos filosóficos. Era, porém, um espírito impregnado do mais profundo liberalismo. Abolicionista e republicano durante a mocidade, conservou até à velhice o culto das doutrinas humanitárias, que os teóricos da Revolução Francesa lhe tinham deixado impressas na consciência. Num volume de estudos filosóficos, publicado nos começos do século, ele doutrinava, numa reflexão que me parece fecunda: “Do coração humano sobe ao cérebro e do cérebro desce ao coração o grito contra a escravidão, qualquer que ela seja.” E com estas palavras acentuava a sua fidelidade às lições dos mestres, os juristas de todos os tempos: “A força que secunda um direito é também um direito. Quando a humanidade compreender isto, o equilíbrio do direito trará o equilíbrio das forças.” Foi essa alma banhada do mais ardente zelo pelos heróis do pensamento audacioso que me ensinou a amar Nabuco.

Juntamente com esse amor à liberdade, ele me incutiu no espírito, desde os meus primeiros alvores de consciência, o amor pela meditação e pela sabedoria. Dele é que trago essa incapacidade sem remédio para as coisas práticas, esse amor à indolente contemplação, que tanta vez me tem levado a compreender que sou um deslocado neste nosso mundo pragmático de hoje.

Professor de Filosofia na Faculdade do Recife vivia ele para a única delícia das suas cogitações espirituais. Muita vez me insurgi contra as divindades do seu culto, que tanto lhe exigiam e tão pouco lhe davam.

 – Para que filosofias? perguntava-lhe eu. Para que filosofias?... O esforço dos pensadores não deve circunscrever-se às meditações puramente abstratas e desinteressadas: deve, antes, tender às aplicações de natureza prática. O valor dos cérebros humanos deveria ser aquilatado pelo critério da utilidade da obra que eles tivessem criado. Sabedoria de aplicações úteis! – eis o princípio que deveria dar a medida do mérito dos trabalhadores intelectuais. Uma partícula do cérebro de um homem como Pasteur, como Edison ou como Laënnec vale todo esse universo multiplicado em teorias, que é o cérebro de um Spinoza ou o de um Kant. E isso porque, enquanto esses dois filósofos viveram na contemplação pura do Absoluto, ou de um relativo que eles próprios sabiam ser o único absoluto accessível ao homem, um Pasteur, um Edison e um Laënnec, cada um no seu ramo, cada um no seu laboratório, cada um no seu hospital, cada um na sua estufa, sondavam a vida na realidade precisa da vida, e, com o milagre do seu belo gênio, traziam novos contingentes de utilidade aos homens. Esses são os santos merecedores dos altares das gerações. Esses, os verdadeiros sábios. Para que, pois, filosofias, essas mansões vazias do Abstrato, esses impérios remotos do Impossível?...

Assim lhe dizia eu... Como única resposta, o enamorado das contemplações teóricas sorria...
Hoje, eu lhe não posso já dizer o que dizia outrora. Hoje, quero entoar a minha palinódia.
Vi-o, nos dias ásperos da vida, embalado e consolado por ela, por essa contemplação pura, desinteressada e generosa. Vi-o, escudado por ela, sobranceiro a ricos e a potentados. Vi-o, reinando no seu reino augusto, desdenhoso dos tesouros do mundo, sereno em suas necessidades, que eram mínimas. Vi-o conservar a felicidade no recesso de um gabinete mais humilde que muita cela de monge... Ali não havia veludos, sedas, ouropéis. Era tudo austeridade, simplicidade, uma pobreza de recanto de claustro. Mas ali vicejava a alegria, a alegria verdadeira! E se a venturosa conformação com as coisas se refugiou, um dia, em algum lugar na terra, foi ali certamente que ela esteve.

E por que isso? Unicamente porque, naquela câmara modesta, que só tentaria aos puros ascetas do pensamento, se movia uma alma que as contínuas meditações da filosofia fecundavam. Aquela câmara era, sem dúvida, pequena. Havia ali, apenas, a luz vaga, que dava uma janela estreita... Mas o pensamento que dentro dela se agitava era destemido. Era um pensamento que voava sobre continentes virgens e oceanos indomados, sobre povos, sobre civilizações e sobre universos. E o encanto dessas audácias, quem o criou, senão a Abstração sem mescla? quem, senão a pura contemplação filosófica?

Hoje eu atribuo à ciência, que é ou se torna útil, um lugar preclaro na consciência e no destino do homem. Mas, acima dessa utilidade, quero colocar a contemplação desinteressada das coisas. Em suma, se ao terreno fechado dos filósofos ousarmos levar as expressões da poesia, eu vos direi, um pouco com Aristóteles, que a filosofia é alguma coisa divina. Ela é a coroa de estrelas, que resplandece no cimo dos conhecimentos humanos. Somente aqueles que por inteiro se entregaram ao seu amor exigente encontraram na terra as verdadeiras delícias do pensamento.

A JUVENTUDE DE HUMBERTO DE CAMPOS

Definindo-se, a si próprio, no prefácio de suas Memórias, Humberto de Campos se dá como “um homem que fez sozinho a sua marcha desde as vizinhas do berço, e lutou, sozinho, contra todos os obstáculos de sua própria condição e contra todas as tentações que o assaltaram pelo caminho.” E ajunta: “Não cheguei muito alto, de modo a ombrear com os escritores notáveis do meu país, porque vim de muito baixo. Mas percorri maior distância do que eles, porque vim de mais longe.”

Sua vida, ele a reconstituiu, minuciosamente, até a idade dos dezesseis anos. É uma vida modesta e vulgar.

Nascido em 1886, em Miritiba, no Maranhão, Humberto de Campos era filho do comerciante e fazendeiro Joaquim Gomes Veras e de sua esposa, dona Ana de Campos Veras. Miritiba é uma doce vila, que dista algumas horas apenas de São Luís. Está edificada sobre um pequeno rio, não longe do oceano. Assim, foi o mar quem primeiro ensinou à criança que havia de ser um escritor ilustre a poesia maravilhosa da solidão povoada de mistérios.

Humberto viveu um pouco sob a obsessão de sua cidadezinha natal. Evocou-a, sempre, com emoção. Em uma de suas quadras, assim a celebra:

Eu nasci como a gaivota
Perto do mar, entre escolhos...
Por isso é que não se esgota
A água do mar em meus olhos!

Depois, num dos sonetos mais suaves da nossa língua, pintou-a de novo, pintando a sua primeira saudade de imigrante:

 É o que me lembra: uma soturna vila
Olhando um rio se vapor nem ponte:
Na água salobra, a canoada em fila...
Grandes redes ao sol, mangais defronte...
De um lado e do outro, fecha-se o horizonte...
Das ruas somente... a água tranqüila...
Botos na preamar... A igreja... A fonte
E as grandes dunas onde o sol cintila...

Eu, com seis anos, não reflito ou penso,
Põem-me no barco mais veleiro, e, a bordo,
Minha mãe, pela noite, agita um lenço...

Ao vir do sol, a água do mar se alteia.
Range o mastro... Depois... só me recordo
Deste doido lutar por terra alheia!

Desde quase o berço, fica órfão de pai. A pobreza, a miséria rondam o lar, onde uma triste mulher luta heroicamente para alimentar os filhos. A vida leva-o a exercer misteres humílimos: ele é, agora, praticante de alfaiate, depois caixeiro de balcão de venda, mais tarde aprendiz de tipografia, lavador de pratos de um botequim... Se variam os ofícios, variam também as paisagens: Miritiba e Parnaíba, ilha Grande ou de Santa Isabel, São Luís, Belém do Pará... Eis os ambientes em que a sua alma de criança e adolescente se plasma. E, se variam os ofícios e os ambientes, variam também as tendências do espírito. Aqui o temos doce e compassivo; ali o temos malicioso e mistificador; mais longe o temos apaixonado pelos banhos noturnos, no rio, em companhia dos meninos de sua idade; e finalmente, o temos palpitante, glorioso de esperanças imprecisas, no primeiro embalo da vocação literária...

Esta primeira fase da existência ele a rememorou, tanta vez comovido e terno, tanta vez amargo e doloroso, nas páginas de suas Memórias. Este livro, porém, vem apenas até ao raiar do século. E quando, nele, nos despedimos de Humberto de Campos, deixamos o escritor ainda adolescente, em Belém, a vibrar na admiração ardente de Coelho Neto, o cavaleiro andante da literatura, que, àquele tempo, havia ido ao Norte do Brasil, a levar aos gentios as lições de sua crença e de seu amor à beleza da arte escrita. É sob a fascinação inevitável de Coelho Neto que, de ora por diante, se vai desenrolar o fio da vida de Humberto de Campos. Depois que o deixamos, no último capítulo das Memórias, as suas aventuras no grande rio são numerosas. Ele vive longos anos em excursões no Purus, no Madeira e no Juruá. Viaja pelo Ceará, pelo Piauí e pelo Maranhão. Em 1908, dirige, no Baixo Amazonas, a exploração dos seringais. Tem, então, um contato direto e diário com a vida dos homens mais infelizes que existem no Brasil. Vê os seringueiros explorados, humilhados, assassinados, trucidados.

Esse mundo de Dostoievski enche de indignação a sua alma entusiasta. E ele começa a escrever, nos jornais de Belém, vibrantes artigos de protesto. O chefe político do Estado, o Senador Antônio Lemos, pressente no jovem jornalista destemido a força do talento e da cultura. E oferece-lhe um lugar na Província do Pará. Pouco depois o convida para seu secretário particular. E, sucessivamente, o nomeia para os cargos de chefe de seção da Prefeitura de Belém, diretor da Secretaria do Conselho Municipal, secretário da Comissão Executiva do Partido Republicano Paraense, secretário da Municipalidade.... Está-lhe prometida uma bela viagem: ele irá à Itália, terra dos seus sonhos, irá ver algumas das coisas mais formosas do mundo... Mas sobrevém um período de lutas políticas. E as lindas esperanças se desfazem!

HUMBERTO DE CAMPOS, POETA

O que não se desfaz nunca é, porém, o sonho do homem de letras que há em Humberto de Campos. Com efeito, é ininterrupta, desde o primeiro momento, a sua atividade literária. Desde que, nos primeiros albores da mocidade, descobriu, em seu íntimo, a vocação das letras, não deixou mais de produzir. Serviu, primeiramente, à poesia. Depois serviu à prosa. E, como prosador, nós o temos jornalista e cronista, autor de contos e de memórias, crítico, ensaísta. Não tentou, que eu saiba, o romance, porque lhe não sobrou tempo. Imaginou, entretanto, escrevê-los, e mais de uma vez, em artigos avulsos, disse o que haveriam de ser esses livros, se o destino lhe desse o lazer necessário para realizá-los. Nenhuma província literária lhe ficou vedada. E ele bem poderia repetir, ao se encerrar o ciclo dos seus dias, a bela palavra de um grande homem: “Fiz-me tudo para servir a todos.”

Seus primeiros versos despertam um entusiasmo grande no Rio e em todo o Brasil. Traziam uma nota nova. Humberto de Campos era, de certo, um epígono do Parnasianismo. Tendo nascido para a vida do pensamento no instante em que no país ecoavam, com estridor, as grandes vozes de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, era nas pegadas desses mestres que ele caminhava. Tinha a sedução dos assuntos históricos e das grandes paisagens. Mas, ao lado desse velho arsenal do Parnasianismo, trazia uma tendência sua e nova: o gosto da poesia local, a faculdade de transformar em musicais sonetos os aspectos da existência ou do cenário do Amazonas. Celebrava os descobridores duros que se foram perder nas regiões aspérrimas do Brasil, e, sobretudo no Solimões, no Madeira, no rio Negro. Celebrava Pero Coelho, descobridor do Ceará, e o Padre Francisco pinto, catequista de Ibiapaba. Celebrava La Ravardière, fundador de São Luís do Maranhão, e Caldeira Castelo Branco, fundador de Belém do Pará. Celebrava Pedro Teixeira, o primeiro civilizado que subiu o Amazonas, e o Padre Luís Figueira, que levou a cruz aos índios, nas regiões remotas do rio-mar. Celebrava Bento Maciel Parente, e Maurício de Nassau, e o Padre Antônio Vieira, e Domingos Afonso Mafrense, povoador do Piauí. Celebrava a mansidão dos jesuítas e a tristeza fatalista dos seringueiros.

A Amazônia deu-lhe motivos imensos. Ele cantou o irapuru, evocou as visões dementes de Orellana, memorou a tribo desfeita dos Aturés. E assim cantou, também, Manôa, Diego Ordaz, Lopo de Aguirre, Afonso de Herrera, todos os violadores do Eldorado...
Como um resumo dessa tendência de sua poesia, quero citar-vos o soneto A Amazônia:

Este é o palácio da Mãe d’Água... O dia
Não corusca de sol como corusca
Seu mais frágil portal, que espanta e ofusca
De encantados metais e pedraria.

Ai, entretanto, de quem corre e o busca!
Ai de quem, ao transpor-lhe a frontaria,
Tomba lá dentro com volúpia brusca,
Arrebatado pela verde orgia!

Mães e noivas do Sul, ao noivo e ao filho,
Se andam no Euxino, entre marnéis e escolhos,
Dizei que fujam de frontais em brilho.
Lá vive a Iara, a náiade-cetáceo...
E desgraçado de quem põe os olhos
Nos traidores portais desse palácio!

Essa preocupação dos temas amazônicos foi facilmente suplantada por outras inspirações. Humberto de Campos detém-se na contemplação da psicologia e dos sofrimentos do seu povo... Debruça-se sobre a sua própria vida, vendo rutilarem, nos longes, as miragens de ouro e luz da meninice... Entrega-se aos caprichosos devaneios do amor... Toma todos os rumos dos sentimentos ou das idéias. E vai buscar a poesia profunda que em tudo existe.

Há uma contradição dramática na alma do brasileiro. Provindos de várias raças, nós vivemos solicitados por ímpetos e tendências antagônicas. Queremos partir sempre; e simultaneamente queremos sempre ficar... Ouvimos o apelo da terra em que nascemos, e que nos prende; e, no mesmo instante, ouvimos o chamado da sereia da aventura, que nos quer impelir para longe... Essa contradição é que constitui, sem dúvida, a amargura e a delícia das almas formadas, como a nossa, pela superposição de várias almas diferentes. Eis como Humberto de Campos fixa esse estado de espírito:

Esse teu corpo moreno Apolo,
Esse espírito bom de bardo afoito,
São, meu irmão, o símbolo do solo
Brasileiro no século dezoito.

Vibras mais que ninguém: é lira de oito
Cordas teu coração. De pólo a pólo
Debalde anseia essa agonia um coito,
Busca debalde essa cabeça um colo!

Teu corpo é um campo de batalha: uivando
Sentes três raças, em fartura ou sede,
Pelas tuas artérias batalhando.

E eis porque sentes, dia a dia, à toa,
Essa ambição de apodrecer na rede
E esses impulsos de brigar em Goa!
Uma tal balbúrdia no espírito é feita, realmente, para criar tragédias intensas... Daí essa inquietação do homem que se procura a si mesmo e que se não acha nunca, do homem que busca e pede o amor, a consolação do amor, e não encontra, jamais, nem mesmo essa consolação!

E eu, sem rei! eu, sem Deus! eu, sem ter dama!...
Nestas cruzadas, qual o cavaleiro
Que não crê, que não serve, que não ama?

Qual o templário que, a lidar, como eu,
Maneja a lança pelo mundo inteiro,
Sendo rebelde, misantropo e ateu?

Onde é que passa, escudo à mão, na História,
Cristão guerreiro, idólatras domando,
Sem ter quem teça os seus troféus de glória?

Quem já viu, em que tempo e em que lugar,
Um herói cavaleiro batalhando
Pelo simples prazer de batalhar?

Ninguém: que a terra nunca teve espada
De quem, sem rei, sem Deus e sem amante
Se expusesse, feroz, nesta cruzada!

Ninguém: que nunca teve lança à mão
Guerreiro audaz ou cavaleiro andante
Sem ter amor e sem religião!

Ninguém: que, em febre, nesta doida lida,
De alma queimada numa ignota chama,
Sou, miserável! O único na vida,

Que não crê, que não serve, que não ama!

Os versos de Humberto de Campos têm de admirável, sobretudo a musicalidade perfeita. Não sei de outro poeta que tenha tido tão agudamente, no idioma português, a ciência do ritmo. É essa música que lhe dá aos poemas uma cor especial na literatura brasileira. E dizer de um poeta que ele tem o dom da musicalidade perfeita, é dizer alguma cousa... A vida, toda ela, é música, é ritmo.

Tal é a poesia de Humberto de Campos, meus Senhores. Eu poderia resumir o meu juízo sobre ela, dizendo-a a poesia dos metros claros e das rimas impecáveis. Mas acrescentarei, também, que ela é, em certos passos, a poesia da nostalgia, a poesias da melancolia. Em uma palavra, ela é, também, a poesia do pessimismo.

JORNALISTA E CRONISTA

Publicado, em 1911, o seu primeiro livro de versos, obteve Humberto de Campos a celebridade repentina. Carlos de Laet saudou-o, num dos artigos do Microcosmo, de O País, como a um próximo candidato à Academia. “Mais alguns anos (dizia Laet) e teremos o Humberto na Academia, coroado de louros, com um discurso por cima”. O Sr. Afonso Celso, Medeiros e Albuquerque cobrem de rosas a musa adolescente.

E lá fora o entusiasmo é o mesmo. Guerra Junqueira brada, deslumbrado, que se aquilo é Poeira... certamente é poeira de astros... Fialho de Almeida exalta o novo cantor, achando-o “perfeito como um grego, flexuoso e sensual como um verdadeiro americano”. Em Paris, Tomaz Lopes, indo visitar Edouard Schuré, perguntou ao sábio se conhecia algum autor brasileiro. Schuré levantou-se, caminhou até à estante, tomou de um livro e o mostrou ao visitante curioso. Era o livro de Humberto de Campos!
É por esse tempo que ele parte para o Rio. Aqui o vemos, desde 1912 até 1916, tentando a carreira burocrática. Faz-se funcionário da Secretaria dos Negócios do Interior e Justiça. E ali, no intervalo dos ofícios que redige para a assinatura de Rivadávia Correia ou Herculano de Freitas, retoma os seus suspiros de amor, alinhado-os em sonetos, ou medita a composição de alguma crônica de estilo castigado.

É que já a sedução da imprensa o chama de novo. A sereia enganadora, que ele deixara em Belém, acena-lhe hoje no Rio... Humberto é agora redator do Imparcial. Estamos numa das fases mais vibrantes da imprensa brasileira. Acabamos de vir de uma grande campanha nacional. Há poucos anos, Rui sacudiu a maré-morta de nossos prelos com a agitação salutar do civilismo. Agora, ou pouco depois, teremos as vibrações novas, que aqui despertam os ecos da luta que se desencadeia na Europa...
 O Imparcial refletia, na sua vivacidade inquieta, o ambiente do Brasil e do mundo. Em sua redação congregavam-se nomes dos mais brilhantes das letras brasileiras, naquele momento. Dois de seus redatores, Osório Duque-Estrada e Goulart de Andrade, acabavam de transpor os umbrais de vossa Casa. Humberto de Campos ligou-se desde logo com os mais representativos nomes de nossas letras. São seus amigos Coelho Neto, Olavo Bilac, Emílio de Menezes. Dessa época retém ele reminiscências pitorescas, que, depois, através de lentos anos, de vez em quando contará em crônicas de jornais.
Desde esses dias, e por mais de vinte anos, a sua atividade de cronista se multiplicará, quase sem solução de continuidade. Ele percorre várias redações, nessa peregrinação melancólica que no Brasil é a vida de um jornalista. Seus pseudônimos são vários e enchem colunas e colunas das folhas cariocas. Às vezes, seus artigos aparecem, simultaneamente, no Rio e em São Paulo, na Bahia, no Recife e em Porto Alegre...

Descontente dos jornais, em certa época ele tenta uma revista. Não creio que essa tentativa lhe tenha trazido alguma vantagem prática. Desiludido, regressa à banca de redator dos diários da cidade... Suas crônicas vão-se multiplicando. Dá-lhes Humberto o melhor de sua emoção, enche-as de poesia, de paisagem, de doçura, de ritmo e de cor. Seu estilo, que é um dos mais corretos e claros que as letras brasileiras têm visto, vai-se aperfeiçoando dia a dia. Ele vai encastoando, em cada uma dessas páginas, uma referência da história ou da lenda, a passagem da vida de um varão famoso, a citação de um grande livro sagrado ou profano. Suas crônicas constituem, desse jeito, verdadeiras florestas. São silvas, como as que, em outros séculos, foram tão do gosto dos escritores de nossa língua. E, por essa tendência, Humberto de Campos, mais, talvez, do que qualquer outro escritor brasileiro, está incorporado à falange ilustre desses que se chamam Manuel Bernardes, Dom Francisco Manuel de Melo, Frei Luís de Sousa.

Não sei se todos os leitores de Humberto amam esse aspecto de suas crônicas. Eu, de mim, o amo, achando, nele, o sabor delicioso que tem a obra de certos autores clássicos. É que Humberto de Campos sabia bem o seu ofício... Estava no caso da observação de Montaigne, que queria que cada um só escrevesse sobre o que sabe e tanto quanto sabe... Não foi outro o programa que Humberto seguiu na composição de seus livros. Essas pequenas crônicas, que a sua pena ia diariamente jogando no papel, refletem-lhe a emoção, e, melhor ainda, refletem-lhe o pensamento. Por isto, são fecundas. Só o pensamento cria, meus Senhores. Que é o sonho, que é a poesia, que é o amor, que é a vida, que é o universo todo, com os seus prodígios, senão um simples reflexo de nosso pensamento?

LITERATURA FESCENINA

Nas colunas dos jornais em que trabalhava é que Humberto de Campos cada dia ia publicando uma anedota pitoresca, uma historieta espirituosa. É no enorme acervo do povo, na imaginação onímoda das multidões, que ele vai buscar os motivos e os assuntos. A fantasia popular é riquíssima. Só com o recolher essa imensa produção, que cada dia o gênio novelístico das esquinas arranja, um folclorista paciente poderia fazer obras-primas de graça, argúcia e malícia. Foi o que procurou fazer o vosso Confrade. A seção obteve, desde logo, grande êxito. E, pouco a pouco, Humberto se foi apossando do gênero. Por fim, o Conselheiro XX tornou-se uma das necessidades diárias da cidade. O tom das anedotas, que a princípio era apenas faceto, foi-se tornando mais livre. E, em breve, era francamente fescenina a literatura que o Conselheiro produzia. Isso inspirou contra Humberto de Campos a suspeita de autor imoral. E graves acusações desabaram sobre ele.

Mas, meus Senhores, eu não acho que essas acusações sejam justas. Segundo entendo, não existe literatura imoral. A literatura é, sempre, e apenas, o espelho das sociedades que a produzem. No caso de Humberto de Campos, imoral não seria o Conselheiro XX – seria a sociedade que produzia, que exigia que se produzisse, o Conselheiro XX. Será suficiente olharmos, ainda hoje, as cifras das edições dos livros de Humberto de Campos, para desde logo o verificarmos. As duas séries de Poeira..., livros graves e belos, onde o sonho era alto e a imaginação era pura, não tinham chegado além da segunda edição. Enquanto isso, os volumes facetos do Conselheiro XX cresciam, cresciam, cresciam em tiragens sucessivas. Em pouco anos, a Bacia de Pilatos alcançava doze milheiros: Os Gansos do Capitólio e o Vale de Josafá alcançavam cada um treze milheiros; A Serpente de Bronze alcançava quatorze milheiros; O Tonel de Diógenes alcançava dezesseis milheiros. São êxitos colossais, para o Brasil. E penso que somente ultrapassados – se, acaso, o foram – pelo êxito que vieram a ter, na última fase da vida de Humberto, os volumes melancólicos e desolados em que ele confidencia com os leitores sobre os seus sofrimentos e desgraças íntimas.

Bem vedes que a literatura do Conselheiro XX não era imoral: – imoral era, sim, a sociedade, cujo espírito aquela literatura refletia. Homem de gosto, de sensibilidade e de poesia, não acrediteis que Humberto de Campos deixasse de sentir a atroz melancolia de ter de assumir aquela humilhante caracterização, para encontrar uma forma fácil de ganhar o sustento. No íntimo, o poeta andaria a percorrer as regiões suaves e paradisíacas, onde se apraziam as Armidas dos seus sonhos. Continuava no idílio com as mulheres puras dos seus poemas prediletos. Mas, se a sua literatura refletisse apenas a pureza e a doçura, quem lhe pagaria os miseráveis mil réis que os contos rabelesianos do Conselheiro XX cada quinzena lhe davam?...

Vemos, atualmente, uma longa florescência de escritores audaciosos, que não recuam diante da pintura dos quadros mais torpes. Poderemos, em boa justiça, dizer que são imorais esses autores? Ou imorais não seremos, de preferência, todos nós, que, numa cumplicidade covarde, permitimos que esses escritores existam; nós, que fornecemos as condições necessárias ao seu desenvolvimento, fechando os olhos, como os fechamos, às chagas que nos ulceram, e que constituem nódoas das mais vilipendiosas da civilização contemporânea?

ELEIÇÃO ACADÊMICA – A MOCIDADE E A ACADEMIA

Assim, estava Humberto de Campos consagrado como jornalista. Seu nome circulava, já, por todo o Brasil. As folhas cariocas invejavam o diário feliz que lhe acolhia a colaboração tão procurada. Aqui e ali surgiam outros articulistas, alguns também de talento, que procuravam imitar-lhe o gênero... É então que a glória vem buscar o escritor maranhense.

Realmente, é por esse tempo que Humberto de Campos vê realizar-se o vaticínio amável de Carlos de Laet: a Academia abre-lhe as portas, e ele aqui entra, “coroado de louros, com um discurso por cima”. Laet tem a alegria de presidir à sessão em que ele é recebido. Em três lustros, tinha Humberto de Campos feito um longuíssimo caminho, desde as tardes sem pão de Belém até à glória do mais alto instituto de cultura do seu país. Ao ser recebido nesta Casa, tinha apenas trinta e três anos. E, com a sua eleição, a Academia Brasileira mostrou que ama os jovens.

A vossa tradição, Senhores, é bem esta: é a de que amais e quereis os moços. O vosso primeiro evangelista dizia, no maravilhoso discurso em que corporificou os sonhos da Academia nascente: “Uma censura não nos hão de fazer: a de sermos um gabinete de antigualhas. A Academia está divida ao meio entre os que vão e os que vêm chegando; os velhos, aliás, sem velhice, e os novos; os dois séculos estão bem acentuados, e se algum predomina é o que entra; o século XX tem mais representantes entre nós do que o século XIX.”

E vede como, inicialmente, a Academia foi um impulso de moços. Dois dos fundadores desta Casa não tinham ainda chegado aos trinta anos, quando a voz de Lúcio de Mendonça os convocou para a primeira reunião. A lista dos fundadores cuja idade se estende dos trinta aos quarenta anos, é vasta. No meio desses rapazes, um homem que todos amam e glorificam, Machado de Assis, aparece-nos, hoje, como se, naquele momento, já fosse um ancião venerando. Pois esse ancião era apenas um qüinquagenário! A Academia que se formava não se dirigiu aos gabinetes ministeriais, nem aos escritórios dos políticos de prestígio, não foi buscar os grandes nomes da magistratura, ou do patriciado, para trazê-los ao seu seio. Bem ao contrário, dirigiu aos meios onde existiam, livres e esquecidos do sorriso da fortuna, os talentos que representavam autênticos valores literários. Foi às redações dos jornais, foi, algumas vezes, permiti que vo-lo diga, às mesas boêmias dos botequins. Para cá vieram poetas e crônicas, autores de novelas e autores de reportagens, unicamente porque com eles é que estava o verdadeiro espírito literário do país. Esse amor pelos moços, pelos homens sem posição e sem prestígio oficial, a Academia o tinha evidenciado, ainda melhor, na escolha dos seus patronos. Olhai os nomes de alguns desses rapazes magníficos, nossos avôs na glória destas Cadeiras: Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu são quase adolescentes – têm apenas 21 anos; Junqueira Freire tem 23; Castro Alves tem 24; Adelino Fontoura tem 25. Artur de Oliveira, Varela, Evaristo, Laurindo, Rabelo, Manuel de Almeida, Martins Pena, Pardal Mallet, Pompéia, Tavares Bastos, Teófilo Dias estão todos entre os trinta e os quarenta anos. Fiel a esse amor pela juventude, a Academia Brasileira, sempre acolheu os moços. Paulo Barreto transpôs os vossos umbrais aos 29 anos.

E Nabuco, que, desde o primeiro instante, frisava essa tendência, manifestava a sua satisfação, ao verificar que na Academia estava certo de não encontrar a política. “Só assim – concluía ele – não seríamos um parlamento.”

Creio que não me engano se disser que ainda hoje vos orienta esse voto de Joaquim Nabuco. É à mocidade, meus Senhores, que está destinada, no Brasil, a realização de todas as grandes obras. A mocidade é que traz consigo a fé, o calor, o entusiasmo, e todas as vibrações generosas. Para bem sentir a vida que lhe fugia, o grande rei precisou conchegar a sua velhice melancólica ao seio adolescente de Abisag.

Eu não vejo mal nenhum em que para aqui venham homens muito jovens, uma vez que já tenham dado a demonstração cabal do seu talento. Na França a láurea acadêmica em geral coroa os velhos. Mas a França tem outra literatura, incomparavelmente mais rica, – e, porque não dizê-lo? – tem a média de vida bem mais elevada do que nós. Aqui vivemos menos, improvisamo-nos todos, por assim dizer – e também nos vamos muito mais depressa. Um homem como Raul de Leoni ou como António de Alcântara Machado, só teria uma forma de ser acadêmico: é se aqui tivesse entrado bem moço. No Brasil, ao morrerem, ambos já tinham criado obras que os sagrariam à vossa glória; em Paris ou em Londres, talvez ainda andassem a cursar as aulas da Universidade.

A Humberto de Campos coube, em vossa Casa, a Cadeira que está sob a invocação de Joaquim Manuel de Macedo, o gracioso criador de Moço Louro. No prélio teve como competidor Lima Barreto, o infeliz criador de Isaías Caminha.

Vinha substituir a Emílio de Menezes, o terrível poeta. É o próprio Humberto quem assim retrata Emílio: “Homicida pela palavra, a sua estátua, quando ele a tiver, deve trazer nas mãos, como a de Harmódio, em Atenas, um punhal e um ramalhete.”

A Cadeira fora criada por Salvador de Mendonça, cuja obra e cuja vida Humberto se comprometeu a estudar, ao tomar posse do lugar. Não o fez, porém, que eu saiba. Aquele que penetrou na vida entre espinhos e dela saiu entre flores, ainda está, em vosso seio, a desafiar quem lhe estude a atividade intelectual e os dias da existência.

FUNÇÃO DE CRÍTICO

Foi o jornalismo que conduziu Humberto de Campos à crítica.
Leitor de todos os livros, seduzido, sobretudo, pelos escritores clássicos, o vosso confrade criara, através de vários anos de labor infatigável, uma grande cultura. Certo dia, o diretor de importante folha carioca resolveu aproveitar-lhe o cabedal imenso, entregando-lhe a responsabilidade de uma coluna literária. Seu caso foi, assim, como ele próprio observou, um pouco semelhante ao caso de Paul Souday. Era Souday, desde a mocidade, repórter e redator do Temps. Chegara aos 43 anos, quando Adrien Hébrard, diretor daquele matutino, o designou para a coluna de crítica literária. Souday verificou, então, quase com espanto, que a sua finalidade era realmente aquela.

Será um gênero literário legítimo o gênero crítica? Eis uma interrogação que desafia tempo e papel... Confesso que não creio na legitimidade da crítica. Essa arte (se a pudemos classificar como arte, desde que é impossível incluí-la na categoria das ciências) não tem uma orientação, um rumo, sequer uma norma fixa. Baseia-se toda em critérios discutíveis e precários, como são os do gosto, os da sensibilidade, os da cultura. Por que motivo darmos a um homem a função de legislador, de abridor de caminhos, de regulador de processos e sistemas nos domínios literários? Por que motivo eleger um entre alguns milhões, para lhe dar essa incumbência? E se o seu gosto não estiver de acordo com o nosso gosto?...  E se a sua sensibilidade não vibrar em uníssono com a nossa sensibilidade?... E se a sua cultura não estiver orientada no mesmo rumo da nossa cultura?... Todos vós conheceis os casos mais clamorosos de incompreensão no terreno da literatura. Heine detestava Hugo. Flaubert não suportava Lamartine. Tolstoi abominava Baudelaire. Diante disso, como aceitar, considerando-os infalíveis, os veredictos da crítica?

Acresce que é fácil reduzirmos a nada, quando a olhamos de mais perto, a obra dos críticos. Mesmo os mais altos, mesmo os mais sutis – como é fácil destruí-los! Voltaire, que chegou a essa fórmula admirável: – excelente crítico seria o artista que tivesse muita ciência e muito gosto, sem preconceitos e sem invejas – Voltaire conta-nos, a esse respeito, belas histórias. Desencanta-nos, por exemplo, da crítica de Boileau. Queria o poeta uma rima para um verso que acabava em aut? Nada mais fácil: punha-se a denegrir agora Bourseault, depois Hénault, mais tarde Quinault, conforme as ojerizas do momento...

Quanto a Humberto de Campos, ele se deu muito bem no exercício dessa pequena magistratura literária. Trouxe, para a crítica, as grandes qualidades do seu espírito: o gosto sutil, a clara intuição dos sentimentos, a cultura, contemporânea de todas as civilizações.

Ele foi, entre os críticos que mantiveram atividade efetiva nos jornais brasileiros, um dos mais claros e seguros. Sua crítica não visava, como queria Sainte-Beuve, a ser um secretário público: não ambicionava representar o juízo geral sobre um livro ou um autor; pretendia, apenas, dar um julgamento sincero e individual da obra literária, para esclarecimento do público e conseqüente orientação das suas leituras.

Achava-se Humberto colocado entre duas gerações bem diferentes nas tendências e no espírito: de um lado, estava a geração dos parnasianos e dos naturalistas; e do outro lado, estava a geração dos poetas e escritores revolucionários que, com um estrépito violento, veio renovar os ares da nossa literatura. Sua crítica procura ser, assim, um ponto de contato entre as duas mentalidades.
Surge, aqui, um problema angustiante:

Qual poderá ser, em um país como o Brasil, a tarefa de um crítico? Numa literatura fecunda, realmente criadora, a crítica tem a sua missão relevante: a missão de classificar, a missão de organizar, a missão de orientar. Mas aqui, com a nossa legião infinita de analfabetos, com essa produção esmagadora de livros que não podem decentemente sequer ser incluídos numa coluna de registro literário... que haverá de fazer o crítico?

E, com efeito, a situação em que se vê colocado um homem que tem a seu cargo o exercício da crítica, em um país como este, é uma situação bem difícil... Por um lado, ele faz esta consideração melancólica – a de que, numa terra de tão poucas letras, todo aquele que se dedica às letras, mesmo que sejam ruins, comete um ato de heroísmo, digno pelo menos de simpatia; por outro lado, vê-se às voltas com essa outra cogitação atormentada: – a de evitar louvar, por dever de puro policiamento literário, o que é tolo, ou frívolo, ou medíocre.

A crítica, em nosso país, tem sido uma função mais árida e mais martirizante que outra qualquer. Tivemos, sem dúvida, um período áureo do gênero, com a floração de Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior. Mas o tempo em que viviam esses escritores era bem diferente do tempo em que vivemos nós outros. Eles não sofriam essa inquieta trepidação que nós sofremos hoje, na época do rádio, da televisão e do zepelin. Tinham nas suas crenças literárias uma solidez que, eu creio, em nossos dias, nenhum de nós tem mais... E, existindo numa época de progresso menos intenso, em que o Brasil não tinha atingido ainda o nível de civilização em que o vemos hoje, o ócio lhes era longo, para que eles pudessem dedicar compridas horas à meditação e à leitura.

As condições da vida, porém, tornaram-se ásperas. Já agora o ambiente moral e espiritual do Brasil é muito diverso daquele que cercou os três mestres da nossa crítica no século passado. A nós, não nos é possível despender, com o exame dos autores e dos livros, o repousado tempo que eles gastavam. O ritmo precipitado dos dias que vão correndo exige uma velocidade crescente, que não permite descanso. E, enfim, a média da produção mental, que se conserva cada vez mais baixa, aniquila, em todos os trabalhadores intelectuais o gosto pela atividade crítica.

Considerai o infinito material que têm produzido os críticos brasileiros, para deixá-lo de lado, como coisa inútil – e podereis compreender, só com esse fato, o terrível amargor que representa para eles o exercício da crítica. De quantos trabalhos desse gênero, assinados por nomes prestigiosos, como os de Machado de Assis, Quintino Bocaiúva, Capistrano de Abreu e tantos outros, estão cheias as colunas dos nossos jornais – sem que esses autores jamais tivessem pensado em dar a forma de livro a nenhuma dessas páginas! João Ribeiro perdeu, com a atividade de crítico, longos anos de vida. Elaborou, assim, artigos e ensaios, que dariam para compor, se fossem reunidos em volume, uma pequena mas preciosa biblioteca. O desdém com que ele encarava essa hipótese era, porém, profundo.

E sabeis que esse tesouro de Creso anda todo disperso, à espera, talvez, de que a piedade maternal da Academia o reúna, para dar-lhe a forma definitiva de livros. Estou certo de que poderia dizer o mesmo com referência a Medeiros e Albuquerque.

Humberto de Campos, que não escreveu tanto quanto João Ribeiro ou Medeiros e Albuquerque, tem, igualmente, uma cópia numerosa de estudos de crítica, ainda não recolhidos em volume, mas perfeitamente dignos dessa homenagem.

Nas dificuldades com que arcava, sendo crítico, Humberto de Campos tomou um partido inteligente: selecionou alguns livros e alguns homens. E, em vez de perder tempo, escrevendo sobre algumas centenas de autores que literariamente nem chegam a existir, dedicou as meditações a três ou quatro dezenas de legítimos homens de letras. Esses, estudou-os ele com minúcia e penetração. Sua crítica tem isso de interessante, e muito raro, no Brasil: não se deixa enredar nos preconceitos das escolas. Ausente e acima dos grupos literários, ele dedica as reflexões a escritores de todas as tendências. Os modelos que escolhe estão tanto no Classicismo, quanto no Romantismo, tanto no Parnasianismo, quanto no Simbolismo, quanto no mais desvairado Modernismo. É com a mesma compreensão e simpatia que estuda Joaquim Nabuco e Ronald de Carvalho, Luís Carlos e Gonzaga Duque, Guimarães Passos e Manuel Bomfim.

Esse traço de imparcialidade, de aceitação de todas as correntes, imprime um caráter especial à sua crítica. Creio que esse caráter o assinala como um dos críticos mais autorizados que temos possuído.

AMOR PELOS AUTORES ANTIGOS

O vosso confrade viveu no estudo e na contemplação dos escritores antigos. Sua atmosfera espiritual foi, de preferência, a atmosfera de Péricles em Atenas, a de Horácio em Roma, a de Firdusi na Pérsia, a de algum santo piedoso, ainda assim erudito e amigo das letras profanas, na Idade Média italiana ou espanhola. Sua freqüentação das lendas árabes começou nos dias da adolescência. E esse amor pelas princesas e pelos dervixes das Mil e Uma Noites, prolongou-o ele até aos derradeiros dias da vida. Na última fase de cronista, ainda lhe encontramos páginas e páginas em que nos reportamos àquele mundo mágico de poesia e sutileza. E que melhor documento desse amor poderíamos querer do que seja todo esse livro escrito à sombra das tamareiras, livro no qual perpassam símbolos tão vivos, figuras tão palgitantes, que de certo encheriam de delícias a alma do poeta do Shah Nameh?...

Curiosa, essa fuga perpétua para o passado! Curiosa, essa fuga em que vive Humberto de Campos! De forma geral, podemos dizer que não há uma só página escrita por ele em que deixemos de ouvir o verso de um poeta antigo, em que deixemos de encontrar a meditação de um antigo moralista. Único entre os nossos escritores atuais, ele tinha a audácia de citar em latim os autores latinos. E, para maior malícia, não apresentava nunca o correspondente em português dos trechos citados! É bem verdade, Senhores: na sua aparência física, Humberto viveu conosco, em nossos dias; mas, na imaginação, e talvez até na sensibilidade, ele nunca foi contemporâneo nosso...

Essa reflexão transporta-me a uma passagem de George Brandès acerca de Anatole France. Em visita ao mestre do Jardim de Epicuro, observou Brandès que ali, na cidade dos livros, não se encontrava um só volume assinado por um autor contemporâneo. Interrogado a esse respeito, Anatole France disse:

– Eu não possuo nenhum livro moderno. Não conservo os que me enviam. Mando-os para um amigo que mora no campo.
Surpreendeu-se Brandès e perguntou-lhe se os modernos não lhe mereciam curiosidade. A isso retorquiu Anatole France:
– Meus contemporâneos nada me interessam. Tudo o que eles me podem dizer, eu sei por mim mesmo. Petrônio me ensina coisas muito mais úteis dos que Catulo Mendès.
Sentindo a sua curiosidade cada vez mais espicaçada, Brandès tornou:
– Ao menos um, entre os autores contemporâneos, você guardará na sua biblioteca. Onde estão os volumes de Anatole France?
– Também não os coleciono, respondeu o criador de Taís.
E logo ajuntou:
– Um homem que construiu um palácio conhece-o tão bem que não suporta estar a contemplá-lo de vez em quando. Eu não poderia andar com os meus livros na mão. Que haveria de fazer com eles? Direis que isso poderia evitar que eu estivesse a repetir-me... Pois ficai sabendo que eu não o evito. Eu me repito constantemente.

É claro que Humberto de Campos não levava o amor pelos autores antigos a ponto de excluir inteiramente os autores modernos. Acredito que, pelo menos os vossos livros, senhores Acadêmicos, ele não os mandaria para o amigo do campo. Mas é claro, também, que, como Anatole France, ele sentia um aborrecimento glacial diante de certas formas do pensamento contemporâneo. E evitava esse aborrecimento, fugindo, em espírito, para as velhas épocas, de uma cultura mais fina e mais harmoniosa que a nossa cultura de hoje.

ORGANIZAÇÃO SOCIAL

É esta a ocasião de estudarmos as idéias de Humberto de Campos, com referência aos problemas gerais, de organização social e moral. Nesse terreno teríamos longas disquisições a fazer, se lhe fôssemos examinar os vários livros. Esta parte do meu estudo terá que ser forçosamente sumária, servindo, apenas, como indicação de alguns pontos essenciais das convicções do escritor.
Com referência à organização social e política dos povos, Humberto mostrou-se, sempre, um partidário dos ideais republicanos, da democracia, tal como a temos em nosso país. Ele está longe de aceitar – pelo menos para a nossa terra – as soluções extremas.

Confessa-se perfeitamente convicto dos defeitos que inquinam as sociedades contemporâneas. E no entanto – acrescenta – não tem coragem de afirmar que as sociedades melhorariam, se fossem organizadas de maneira diversa daquela que hoje predomina...

Volve os olhos para o Brasil, e examina as possibilidades, que acaso teríamos, de uma transformação de regímen. Essas possibilidades, se existem, parecem-lhe muito remotas. Em seu entender, o comunismo, para medrar, seja onde for, precisa, antes de tudo, da ação lenta dos líderes. Medrou na Rússia, porque ali existiria, previamente, esse trabalho. “No Brasil – pergunta-nos – onde estão os homens capazes de conter as massas?”

Seu ceticismo político leva-o a crer que “os únicos governos bons são aqueles que jamais se realizam”. Mas, se lhe perguntássemos o que é um governo bom, talvez Humberto nos desse uma resposta simples... Ele sonha um governo que, evitando os excessos do regímen comunista, caminhe, na doutrina e na prática, até aos limites do socialismo. Quer as grandes tributações para as fortunas, quer a repartição equânime da economia, quer o nivelamento das classes. Num artigo dos mais interessantes que escreveu (Os Párias) dá-nos a enumeração das reformas que no Brasil lhe parecem urgente. Em primeiro lugar, quer melhorar as condições do proletariado, interessando-o na propriedade das fábricas, dando-lhe participações nos lucros; em segundo lugar, quer que se faça uma revisão em nossa legislação agrária, suprimindo os latifúndios; em terceiro lugar, defende uma distribuição mais radical das rendas, de forma que tenhamos mais hospitais, mais higiene, mais escolas, mais serviços de assistência; por último, sustenta a necessidade da revisão da lei do serviço militar, com o intuito de melhorar as condições de vida no interior do país. Essas são as medidas mais imediatas que Humberto vê para o Brasil.

Tendo largamente examinado o assunto, conclui a sua dissertação sobre o comunismo com estas palavras: “O comunismo é um fenômeno internacional ou universal, mas que eu temo ver em execução no Brasil, porque conheço, como partícula dele, a índole e o coração do meu povo.”

ORGANIZAÇÃO MORAL DA FAMÍLIA

Até aqui temos visto quais são as idéias de Humberto de Campos, com relação aos problemas políticos, e, especialmente, ao seu vago socialismo. É tempo de examinar as suas opiniões sobre a organização moral da família.

Como sabeis, Humberto de Campos dedicou-se, sobretudo nos últimos anos da vida, ao exame de muitos casos de consciência, que lhe eram levados ao julgamento. “Eu não nasci para amigo dos felizes, mas para confidente dos desgraçados”, diz-nos ao se referir à numerosa clientela de desiludidos que o procuravam. E o trato diário com essas tragédias íntimas, que lhe eram levadas a exame, conduzira-o a uma desoladora impressão acerca do que seja a justiça dos homens. Ele acabou por concluir, melancolicamente, que a Justiça traz na mão uma espada, quando deveria trazer um coração...
Quais as idéias de Humberto de Campos com referência a esses problemas morais, que lhe eram apresentados?

Tradicionalista em moral, amigo das evoluções lentas e pacientes, ele é o paladino das instituições estáveis. A organização da família, no tipo que nos legaram os doutrinadores romanos, e a conservação das relações jurídicas consagradas no Corpus Juris e nas Ordenações, tiveram nele um defensor. Evidentemente, esse defensor é um homem de olhos abertos, capaz de ver a realidade das coisas. Humberto sente, por exemplo, o drama pungente das sociedades do tipo da nossa – drama que decorre, todo ele, do antagonismo que se observa entre o retardamento das leis e o adiantamento dos costumes, que essas leis se destinam a regular. Vivemos dirigidos por códigos que foram elaborados no Brasil do século passado, isto é, num país ainda bem longe de uma perfeita civilização. E que costumes vêm regular esses códigos? Os costumes que assimilamos hoje, através principalmente do cinema, – isto é, os costumes dos países mais adiantados do globo... De maneira que se dá, em nosso foro moral, uma diferença de nível, se assim posso exprimir-me, que nos leva a situações verdadeiramente patéticas.
Os Pangloss de nossa terra, aqueles que acham que vivemos no mais perfeito dos mundos e na mais perfeita das sociedades, decerto não notam essas diferenças de nível. Mas Humberto de Campos as observava. Ele apontou, intemerato, a necessidade de acomodarmos as leis aos costumes, de sorte que os Códigos venham a refletir melhor a mentalidade do século em que vivemos.
Sustentou a necessidade de criarmos várias leis, algumas das quais, já pertencendo, lá fora, ao rol das coisas velhas, seriam aqui inovações capazes de nos trazer um tremor de íntimo receio... Nesse grupo estava, em primeiro lugar, a lei do divórcio. Em um artigo bem característico – “A condenação de Otelo” – examina ele uma série dessas chamadas questões de honra, nas quais vários maridos enganados se viram compelidos a matar as esposas. Humberto pesquisa as causas desses dramas, aponta-as. Depois procura para elas os remédios adequados. E nos diz: “Não é punindo, mas prevenindo, que se curam as chagas sociais. Facilite-se o divórcio integral, em que o homem, restituindo à mulher a sua liberdade, nada tem mais com a sua subsistência. Nem vida em comum, nem nomes, nem interesses.”
É na ausência do divórcio que, a seu ver, se baseiam as mil tragédias matrimoniais, que para ele apelam, pedindo-lhe um conforto e um conselho.

Ninguém teve tanta acuidade para enxergar a razão de ser de todos os dramas domésticos que por aí vão, dia a dia, ocorrendo. E essa razão de ser ele a encontrava toda nos preconceitos que regem a nossa atual organização da família.

Um dos temas prediletos das análises morais de Humberto de Campos é o adultério. Ele explica esse crime como um resultado dos prejuízos que envolvem a nossa lei do casamento. Em seus livros achamos pensamentos tendentes a essa demonstração. Alguns poderiam ser aqui citados. Eis uma de suas reflexões sobre o assunto: “Quando a mulher escolhe, ela própria, a sua cruz, está no dever de levá-la ao Calvário, sem a faculdade, a não ser em casos excepcionais, de atirá-la ao chão, unicamente porque apodreceu no caminho.” Falando à heroína de um drama triste, ele dirá, pouco depois: “Mulher possuída, mulher depreciada. Mulher conquistada hoje, mulher abandonada amanhã. Não suponha que o amante de algumas horas se transformasse em esposo para a toda a vida.” Em outra página, doutrinará a uma terceira das suas infelizes consulentes: “O amante não é melhor do que o marido, senão porque a mulher o vê poucas vezes. Ao fim de algumas semanas, ela sente o coração cheio dele, e ele, com a posse, não tem senão ânsias de libertação.”

RELIGIÃO

Quais seriam os pontos de vista de Humberto de Campos com referência à religião? Por mais de uma vez, ele trata de assuntos religiosos. E creio não errar, se disser que a atitude do vosso Confrade, nesse terreno, foi a atitude da simpatia afetuosa, mas um tanto irônica. Ele amava a religião, sem ter os princípios da religião. Acreditaria, talvez, porém, sem fé, numa vida superior, segundo a sutilíssima fórmula a que chegou um dos mais admiráveis escritores que já se sentaram em vossas Cadeiras. Essa atitude de Humberto era, um pouco, a atitude de muitos dos melhores espíritos desse sugestivo período cultural, que antecedeu à grande guerra. Muitos deles se ocuparam de coisas de religião – e com que emoção, com que suavidade o fizeram! Eu não precisaria analisar a obra profana desses escritores, que nos disseram os prodígios da vida de São Juliano, o hospitaleiro, de Santa Taís, de São Sereno, o mártir sem crença, de Santo Onofre, de São Boemundo, e até os mistérios da igreja do Diabo, para vos mostrar como esse modo de encarar as coisas da crença, – isto é, o da comoção misturada com a ironia, – estava generalizando entre os autores mais ou menos provindos de Voltaire e de Renan, nas últimas décadas do século XIX e nos começos do século XX.

Humberto crera, no início de sua vida. Crera como todos nós, quando somos crianças, no Brasil. Tivera essa doce religião de berço, bebida, juntamente com as primeiras palavras que pronunciara, bebida na mansidão do regaço materno... A vida afastara-o das orações e não lhe dera mais ocasião de meditar sobre esse assunto. Certo dia, achando-se enfermo, ele quis rezar como outrora... “Um dia, senti que a Morte se achava ao meu lado. Procurei no cérebro as palavras do Padre Nosso. Achei-as todas. Mas não as encontrei, como queria, no cofre do coração...” Seu ceticismo torna-se agudo. Leva-o a sorrir dos que crêem com excesso. Ele próprio se confessa um desiludido, um descrente irremediável. “Se Tomé creu, porque viu, eu – ai de mim! eu, o cético sem remédio, eu, o manso rebelado sem cura, eu, o último filho de um século que bebeu veneno no berço – eu não creio, nem mesmo vendo!”

Certo dia, conversam Humberto de Campos e Goulart de Andrade. O poeta de Névoas e Flamas, de cujo convívio encantador a Academia tem estado afastada, relata ao amigo a história de sua conversão. Era ele inteiramente incréu. Mas, um dia, leu o En route, de Huysmans. E logo a sua alma encheu-se de claridade, e seu coração palpitou de luzes novas, como palácios que estivessem em festa... Eram as crenças que lhe chegavam. E Goulart de Andrade, agora seguro de sua religião, encarava, sereno e confiado, os sofrimentos da vida e os obscuros mistérios da morte...

Humberto ouviu-o, atentamente. E, em resposta, declarou-lhe que não podia compreender essa conversão. Para poder crer – acrescentou – exigia uma evidência do raciocínio. Enquanto a crença lhe viesse pelo sentimento, e não pela inteligência, não a poderia ter... Orgulho humanal e vão! – exclamaria um crente. Esse homem que, para crer, queria encontrar as provas racionais de que são verdadeiras as afirmações da fé, estava, afinal, no caso de todos os indivíduos que vivem na terra a procurar uma visão de Damasco.

Até onde o levaria essa incredulidade? Não encontro, em nenhum de seus livros, nenhum desses gritos audazes, de negação formal e desesperado ateísmo. Apenas o vago ceticismo de quem deixa ficar à espera das hipóteses... Apenas o vago ceticismo de quem procura e sente “a presença de Deus na humildade das coisas mansas”...

Essa atitude parece-me sábia, Senhores. Mesmo quando formam céticos, evitemos os abismos sem remédio das negações definitivas. Quem sabe?... Bem pode ser que existam as coisas de que não respeitamos! E a verdade é que o filósofo, o pensador que se sente incapaz de compreender o problema da existência de Deus, e nega, por isso, a existência de Deus, comete um ato de tanta temeridade intelectual quanto o estudante de ginásio que se sente incapaz de compreender um teorema da geometria, e nega, por isso, a existência da geometria.

O PESSIMISMO DE HUMBERTO DE CAMPOS

Devo dizer-vos que, ao lado dessa tendência à conservação, Humberto de Campos tinha da vida uma concepção profundamente pessimista. Em uma das suas coleções de contos humorísticos, encontro um apólogo que bem reflete o seu pessimismo. – Expulso das portas douradas do Paraíso por ordem do Pai Celeste, o primeiro homem se vê nos caminhos solitários, sem companheiro nenhum para compartilhar da sua dor. Súbito, verifica que alguém, seu semelhante, o segue em silêncio. Ao intruso pergunta quem é e o que deseja. Nenhuma resposta. Assombrado, deita a correr por montes e vales, saltando rios, atravessando florestas. Caindo a noite, o vulto desapareceu. O homem já rejubilava na alma, quando a aurora despontou, de novo, no céu, naquele azul do céu da primavera do mundo. E, com a manhã, voltou o companheiro funesto. O primeiro homem interroga-o de novo, com ânsia, quase com desespero. E o intruso, por fim, consente em falar:

– Eu sou o Sofrimento! Irmano-me com a sombra do teu corpo, durante o dia, porque só o sono, filho da noite, apaga as angústias do coração.
E impelindo-o para diante:
– Vamos: marcha para frente. Eu serei, na terra, a alma da tua sombra.
E sumiram-se, a Sombra e o Homem, um atrás do outro, na imensidão do deserto.

Essa mesma concepção amarga e desalentada está em todas as páginas deste escritor. Lembrai-vos daquele tenebroso capítulo do Gênesis, que se acha no primeiro conto de O Monstro. – Era ainda na infância do mundo, e na terra caminhavam dois espectros longos e vagos, a Dor e a Morte... Foram elas – a Dor trazendo a água e a Morte trazendo o barro – que criaram o homem. E, no fim, já o homem criado, as duas dissentiram...

– Quem o criou fui eu, dizia a Morte. Fui eu quem contribuiu com o barro!
– Fui eu, gritava a outra. Que farias tu, sem a água, que amolece a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.
– Eu dei a água! tornou a Dor.
Eu dei o barro! insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a sair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...

Eis o pessimismo lancinante. Eis o amargo pessimismo, que dá a cor a todas as páginas de confidências pessoais de Humberto de Campos. Eis o pessimismo crepuscular, que torna tão difusa a luz que ele projeta sobre os seus artigos da última fase, esses artigos que estão recolhidos, em grande parte, nos Destinos..., nos Párias, nas Sombras que sofrem, nas  Notas de um diarista e em Sepultando os meus mortos.
Na longa solidão das suas noites e dos seus padecimentos, esse homem poderia repetir a triste palavra de Schopenhauer: “Se um Deus criou este mundo, eu não desejaria ser esse Deus. Os sofrimentos deste mundo me dilacerariam o coração.”
HUMBERTO DE CAMPOS E A POLÍTICA

Embora acidentalmente, teve Humberto de Campos certa atividade política no cenário do Maranhão. E o estudo de sua personalidade ficaria incompleto, se eu, que em rápidas linhas, não examinasse essa face de sua existência.

Na mocidade, estivera o vosso Confrade um pouco interessado em assuntos de política. Amigo da situação paraense, fora um dos articulistas mais vigorosos da Província do Pará. Posteriormente, vindo para o Rio, aqui permaneceu, durante mais de três lustros, alheio a toda política, só preocupado com a sua vida de homem de letras.

Em 1926, o Maranhão designou-lhe uma cadeira na Câmara dos Deputados. Humberto rejubilou, não tanto, talvez, porque achasse a entrada para o Congresso uma honra excepcional; mas, sim, porque as vantagens materiais que o cargo lhe dava eram singularmente tentadoras para a sua até então modestíssima verba de escritor e jornalista. Em entrevista que concedeu a uma folha carioca, pouco tempo depois de ter vindo para a Câmara, dizia: “O homem que, tendo uma pena na mão, e possuindo já uma personalidade, se alheia da coisa pública, em um país em que se não pode desperdiçar a menor parcela de energia, comete, mais do que um crime, uma deslealdade com a sua pátria.” E acrescentava: “...mesmo assim (isto é, certo de que a sua atividade ia ser mais subjetiva que objetiva), mesmo assim, não prestando aparentemente serviço nenhum, o homem de letras é útil ao seu país, pois que, ocupando um lugar, impede que esse lugar seja ocupado por um elemento de desordem, instrumento de uma energia negativa e destruidora.”

Ao sabê-lo candidato a uma cadeira de deputado, Lauro Müller, o mais sutil dos acadêmicos, chamou-o ao recanto de uma das janelas desta Casa. E os dois travaram um diálogo curioso.
Lauro: – É certo que você vai, mesmo, ser deputado?
Humberto: – É... sim!
Lauro: – Como sabe?
Humberto: – Sei, porque estou incluído na chapa.
Lauro sorriu, de maneira singular. E lhe deu, então, este conselho:
– Escute menino... Quando o chefe do seu partido lhe disser que você está incluído numa chapa de deputados... você não creia que é deputado. Quando vier a eleição, e o seu nome for votado... também não creia. Quando chegar à Câmara, e se vir empossado na cadeira... ainda não creia. Só creia que é deputado, quando o pagador do Tesouro lhe aparecer, no fim do mês, e lhe pagar o subsídio.
Bastante reconheceu Humberto, alguns anos depois, a prudência dessas palavras. Era deputado, freqüentava a Câmara todos os dias, tinha a cadeira garantida pela Constituição... mas veio a revolução, em meio do mandato, e ele não recebeu mais os subsídios a que tinha direito!

Devo dizer-vos que Humberto não acreditava na política. Nunca sentiu a menor identidade com os processos que ela exige. E viveu sempre demasiado absorvido pelas preocupações de artista e escritor, para poder entregar-se com entusiasmo a qualquer outra profissão. Para dar a sua inteira impressão acerca dessa atividade, bastar-me-á citar a página em que ele conta a história de um rapaz que um dia desejou ingressar na atividade política. Cheio desse desejo, foi o rapaz procurar o maioral do partido, no qual pretendia alistar-se. Recebido pelo chefe, que lhe apoiou o propósito, foi-lhe em primeiro lugar recomendado que tivesse no mais alto grau dois dons: o da paciência e o da renúncia. Cumpria-lhe forrar-se dessas duas virtudes, únicas que levam os homens a suportar a injustiça dos amigos e a infâmia dos adversários. Prometeu o candidato desenvolver o mais possível as duas qualidades. E o chefe imediatamente experimenta a sinceridade da promessa, aludindo a uns certos dinheiros de uns certos órfãos, que o rapaz teria desviado... O moço protesta, cheio de indignação. O velho adverte-o de que, assim suscetível à cólera, ele não irá longe... E vai, de todas as formas, humilhando a alma do rapaz. Diz-lhe que ele não é filho legítimo... cobre-lhe de suspeitas a honra da esposa bem-amada... O exercício dura algumas horas. O rapaz, que saíra desanimado da presença do chefe, volta-lhe ao escritório no dia seguinte. De novo começam as experiências. E o candidato ouve agora, conservando um sorriso inalterável, todas as injúrias que lhe são ditas. Só então o velho ergueu-se, abraçou-o, e lhe disse:

– Agora, sim... Agora você pode entrar para a política.
E incluiu o seu nome numa chapa do partido.
É fácil concluir que o homem que tinha essa idéia sobre a política havia de levar muito pouco a sério a atividade política... Foi o que fez Humberto de Campos. Ele emprestava o nome, o fulgor de sua personalidade, à bancada do Maranhão. Era tudo. A deputação seria, para ele, uma espécie amável de sinecura. Creio que não há motivo para censurá-lo, pela displicência com que ele encarava o mandato. Sua atitude era, aqui, um pouco renaniana. Ninguém melhor do que o poético exegeta da Vida de Jesus terá pregado a necessidade das sinecuras como auxílio e estímulo aos pensadores e aos artistas. No seu velho purana, no Futuro da Ciência, diz Renan: “A maneira mais natural de proteger a ciência é a das sinecuras. As sinecuras são indispensáveis na ciência. Constituem a mais digna e a mais conveniente das formas de pensionar o sábio, e têm, além disso, a vantagem de agrupar, em torno dos estabelecimentos científicos, nomes ilustres e altas capacidades.” Anos depois, em um dos dramas shakespeareanos de sua velhice, ele volve à mesma tese. É Próspero quem, já na agonia, pede a Calibã vitorioso uma sinecura para Ariel todo poesia e pensamento... “Calibã, eu tenho um pedido a fazer-te... Ariel e Celestina são incapazes de lutar contra as dificuldades da vida... Eu te peço para Ariel uma sinecura, a guarda do castelo de Sermione, que não tem a mínima importância para a República de Milão... Isso bastará amplamente para as suas necessidades...”

Humberto teve, assim, a parte de Ariel. Coube-lhe a guarda do castelo de Sermione, em nossa república de Milão.

E tende a certeza de que nunca um mandato de deputado foi melhor concedido do que esse. A representação dos nossos Estados, no tempo de Humberto, que é o nosso tempo, nunca se orientou por um critério de razoável seleção de capacidades. Nunca se orientou pela necessidade de escolher nomes que representem alguma coisa como atividade útil, como pensamento ou como elevação moral. No meio dessa multidão inexpressiva e incaracterística, que todos os períodos de renovação parlamentar enviam para o Congresso, não seria a mais justa das coisas que aparecesse o nome de um homem afastadiço dos manejos políticos, cujo único título aos sufrágios dos conterrâneos fosse constituído pelo talento e pelo saber? Pensar é a mais bela das coisas. Criar uma alta construção literária, elevar, nas regiões do pensamento, o nome do seu país, erguendo obra de idéias fecundas e beleza desinteressada, eis uma tarefa que assegura a qualquer homem o direito a todas as recompensas.

Era isso, afinal, o que fazia Humberto. E, dando-lhe a cadeira na representação federal, o Estado do Maranhão apenas lhe pagou parte da infinita dívida que com ele tinha contraído.

O CREPÚSCULO DE HUMBERTO DE CAMPOS

O pôr-de-sol da vida de Humberto de Campos apresenta indivisível tristeza. O homem tinha vindo, a sofrer e a se amargurar com as coisas, e chegara um pouco além daquele meio do caminho de nossa vida, que são os trinta e cinco anos... Trazia o espírito cheio das noções adquiridas no trato diuturno dos bons autores, na meditação amorosa das obras-primas. Trazia o coração cheio de experiências, mas ainda apto às emoções. E sentia que estava no momento de deixar que o seu mundo interior se realizasse, nas criações mais belas e soberbas.

Esse meio do caminho da vida foi-lhe, porém, aspérrimo e tenebroso. O destino, que sempre pesara sobre ele com impiedade, açulava, agora, contra a sua triste sombra, onças e lobas, mais ferozes que aquelas que outrora haviam surpreendido o Dante. E Humberto começou a percorrer os círculos do seu Inferno.

Velhos males, que, ainda quando ele saía da adolescência, o tinham levado ao leito dos hospitais, recrudesceram. Seu cérebro, fonte generosa de onde brotavam rios de consolação, que iam banhar tantos corações em desespero, seu cérebro confrange-se em padecimentos intraduzíveis: nasce-lhe, em ponto central, um tumor! Esse tumor determina que as extremidades de Humberto de Campos cresçam.
É já em meio dessas amarguras e desses calvários que o destino lhe traz uma nova provação. A taça de fezes desse Jó precisa estar sempre transbordando... É que, certa manhã, ao deixar o leito, depois de uma noite de vigília, Humberto é informado de que o movimento revolucionário, que caminhava do Rio Grande do Sul, está vitorioso. Deputado governista, ele sofre as humilhações impostas aos vencidos. Perde o mandato, e em circunstâncias bem dolorosas: possui em casa apenas alguns mil réis e está com uma dívida de algumas dezenas de contos! É forçado a entregar aos credores o prédio que tinha edificado, sonhando deixar um recanto seguro à esposa e aos filhos. É a miséria, a desolação, que, uma vez mais, o visitam...

Que fazer, em meio a essas inquietações? O casal Humberto de Campos aluga uma casa na praia do Flamengo. Arrenda a estranhos alguns quartos... Ele dirá, a esse propósito, com o seu triste sorriso entremeio de lágrimas: “Vivo, hoje, um pouco, da sobra da sopa, aliás, deliciosa, que a minha casa se prepara para os outros...”

Mas os dias vão passando, e as coisas consentem em mudar um pouco. Lentamente os horizontes se vão desanuviando... A generosidade do governo provisório ouve os tristes lamentos do poeta, e vem ao seu encontro, para dar-lhe uma consolação e um apoio. Humberto é diretor da Casa de Rui Barbosa, é fiscal de ensino. Tem, enfim, um cobertor, sob o qual pode abrigar a nudez, na melancolia das noites geladas. Ele é sensível à espontaneidade do gesto do chefe do governo. E, ao aparecerem as suas Memórias, envia ao Sr. Getúlio Vargas um exemplar em que escreve as palavras que eu peço licença para repetir aqui, pelo muito que elas contêm da alma e do coração do vosso Confrade:      

Ao eminente Sr. Dr. Getúlio Vargas, esta homenagem de profunda e comovida gratidão, pela generosidade carinhosa com que acompanhou, na adversidade e na doença, um pobre escritor que foi seu adversário político, e que, ao oferecer-lhe esta humilde lembrança das suas letras, pode repetir, consolado, os dois famosos versos de Luís de Gôngora:

 Por tu espada y tu trato
Me has cautivado dos veces.

Restam-lhe, porém, as dores, os gólgotas do sofrimento físico. Há dias em que os nervos lhe doem muito, distendidos e sensíveis como se fossem cordas de violino... Há dias em que a cegueira lhe furta o contato divino com as coisas... Miséria... Angústia... Dor... Expectativa ansiosa da morte...
E, ainda assim, Humberto de Campos sonha... Sonha coisas infantis, comovidas ou graciosas, coisas que vai relatando aqui e ali nas crônicas diárias. Sonha com os amigos mortos, os companheiros dos velhos tempos, os mestres que primeiro o guiaram... Mas os sonhos mais belos que faz aquele farrapo triste de homem são ainda os sonhos de acordado. Ele quer a vida, ele ama a vida, ele suspira pela vida! Oh!... meus Senhores, como é doce um fiozinho de crença para aquele que não pode mais crer! Como é suave, e profunda, a fagulha rápida, a entreluzir, perdida no céu, para aquele que está cercado de nuvens tormentosas!

Desesperado, Humberto procura o reino onde, eternas, vicejam as esperanças. Vai ao mais famoso dos ledores de destinos que existem na cidade, procura um quirólogo de ciência provada. Para chegar a crer, apela para a história e para a lenda, para a verdade e para a mentira. Demonstra a si mesmo que a quirologia é uma ciência infalível. Alinha casos e casos em que ela se tenha comprovado. Por que razão agora, com ele, a palavra do Mago haveria de falhar!... Não! É certo que essa palavra não há de falhar! E, dentro da noite da sua amargura, agora tocada de um vago luar de consolação, Humberto de Campos ouve as promessas da vida, que a boca de um homem lhe anuncia: – Terás dinheiro... não muito, talvez, mas o suficiente para viveres bem o resto de teus dias... Viverás uma longa vida, provavelmente até aos setenta anos... A mais formosa e ambicionada de todas as glórias te sorrirá: terás grandes prêmios na tua carreira de letras... e, mais tarde, mudado o regímen político que hoje vigora no teu país, terás ascensões novas...

Humberto vacila, incrédulo; mas sorri, esperançado... A treva que o cerca é realmente espessa e longa. Ele abre, por um momento, a janela, para contemplar as estrelas. Quem sabe?... é nas noites mais densas que as estrelas têm mais brilho... E ele se põe a chamar os amigos, os leitores, toda a gente. Ouçam-nos todos! Ouçam-no bem! O destino acaba de assumir com ele grandes compromissos! Vamos a ver se agora o destino toma vergonha!

Sabeis que o destino ainda desta vez “não tomou vergonha”... A incursão que Humberto fez no reino obscuro da quirologia, e na qual lhe foi prometido chegar até à idade de septuagenário, ocorreu em janeiro de 1933. Menos de dois anos passaram, e, sem dinheiro, sem prêmios, sem glória, ele deixou que o véu de Ísis caísse sobre o seu rosto.

O que foram esses últimos dias de Humberto de Campos, vós o sabeis, Senhores. Vós o acompanhastes no martírio, nesse martírio que dia a dia ele desfiava, como um rosário triste nas mãos de um agonizante.

Na casa de saúde ou no apartamento onde residia, a vida ia-lhe decorrendo, ia-lhe fluindo para a morte. Não creio que algum espetáculo humano me tenha confrangido mais o coração do que as visitas que naqueles dias tremendos fiz a Humberto de Campos. A doença tinha chegado à maior intensidade. Olhando-o, diríamos já discernir a seu lado àquela sombra pálida e gesticulante, de que falava o historiador da Revolução Francesa.

E cada dia o seu espírito se ia polindo, até atingir a claridades etéreas e ideais. Aquele homem triste trazia no peito o coração harmonioso de Apolo. E deu-se, com ele, o mesmo fenômeno observado por Gautier em Gerard de Nerval. Caminhando na loucura, Nerval tinha, à proporção que o mal progredia, uma clareza cada vez maior no estilo e nas idéias.

Nas visitas que os amigos lhe faziam, Humberto de Campos consentia em sorrir dos próprios padecimentos. O bom humor não o abandonou jamais. Era com uma ironia envolta em misericórdia que ele se referia ao seu rabicho, nome que batizara a sonda que os médicos o obrigavam a trazer.
Bom humor, sim... Mas apenas para que os amigos não possam ver as lágrimas que lhe vão caindo dos olhos quase sem luz. Quando está só, ele se concentra com a sua dor. E o diálogo que com ela trava é angustiado e triste. – Minha Dor, tem piedade de mim!... parece dizer Humberto. Eu tenho-te dado tudo o que possuo! Dei-te o meu olho esquerdo, que já não serve para nada! Dei-te o meu olho direito, que não abrange o campo que abrangia outrora. Dei-te tudo o que em mim era alegria, esperança, consolação! Tem piedade de mim, minha Dor!

E ele sonda o mundo em torno a si... Vem caindo a noite... É quase hora de dormir, é quase hora de rezar... A alma, nessa hora, se cobre de véus de tristeza... E, por cima de tudo, chegam novas melancolias... Vem a melancolia de considerar que a única coisa que lhe resta, o seu próprio destino de escritor, falhou e está morto: “Nada escrevo que traga o selo da durabilidade, murmura. Nenhum artigo, sequer, que não esteja destinado a apodrecer no dia seguinte. Nem uma frase, ou uma imagem, que tenha recebido injeção de formol! E eu, sem ilusões de glória, e com a angustiosa, a terrificante certeza de que não deixarei uma obra, e, talvez, nem ao menos, a lembrança do meu nome – pois que o nome é a sombra, sobre a terra, de uma obra ou de um feito, e não pode deixar sombra, conseguintemente, no sol, a árvore que não nasceu.”

Assim diz ele. E em outra passagem anota: “Manhãs de neurastenia... Noites de sofrimento... Síncopes dos nervos... Síncopes do cérebro... Síncopes da vontade... Desejos de dormir... Ânsia de chorar...”
Enfim, busca, na história da literatura, casos de homens de letras que muito tenham sofrido. E o exemplo de Scarron vem-lhe à memória. Ele se sente como um irmão do pobre aleijado. E é destinando-o a servir de inscrição ao seu próprio túmulo, que verte para o nosso idioma o famoso epitáfio do poeta francês:

O homem cansado da lida
Não inveje deste a sorte:
Ele conheceu a morte
Mil vezes dentro da vida.

E quem por aqui se afoite
Não faça barulho enorme,
Pois esta é a primeira noite
Que Humberto de Campos dorme!

Eis aí, Senhores, a pobre imagem melancólica do vosso Confrade, todo alanceado de decepções e martírios.

GLORIFICAÇÃO

Eu não quero, porém, encerrar minha oração, deixando em vosso espírito essa figura dolorosa. Esta hora é a hora da glorificação, e não a do pesar. A imagem de Humberto de Campos que eu desejo fique impressa em vosso espírito é a do homem suave e afetuoso, do homem acolhedor e fraternal, a cujo seio iam abrigar-se tantos corações cheios de dúvidas. É a imagem daquele que compreendeu todas as dores humanas e que soube, por instantes, esquecer os próprios padecimentos, para aliviar os padecimentos dos outros.

Realmente, creio que, em Humberto de Campos, houve, pela primeira vez, no Brasil, um escritor que serviu de conselheiro e guia, de consolação e luz, para uma parte da humanidade. Ele recebia, todos os dias, cartas de todos os pontos do Brasil, pedindo-lhe opiniões e conselhos. Meninas inocentes, que pela primeira vez amavam, queriam ouvi-lo sobre o seu amor. Mulheres que não compreendiam mais os maridos, maridos que não amavam mais as mulheres, desejavam que fosse ele o intermediário, o árbitro das dissensões domésticas. Das prisões os criminosos enviavam-lhe pedidos, queriam um pouco da sua solidariedade e da sua ternura... Há, até, quem lhe solicite empregos... Da Bahia, uma menina de doze anos conta-lhe, numa carta, como, cada noite, a sua família se reúne, para ouvir a leitura dos artigos do escritor queridíssimo... Do Piauí, um grupo de senhoras, suas leitoras, envia-lhe um álbum impregnado de meiguice feminina, todo dedicado àquele cajueiro que outrora, na imprevidente infância, Humberto tinha plantado em Parnaíba... De S. Paulo, uma senhora escreve-lhe, para queixar-se de um filho travesso que de todos os males que vai cometendo se desculpa com esta frase: – “Pior do que isto fazia Humberto de Campos quando tinha a minha idade”... De uma outra cidade paulista, uma menina manda-lhe lembrança curiosa: arranca cento e oitenta e um fios de cabelo e com eles borda o nome do escritor. Ao enviar-lhe a lembrança, adverte-o de que ali está um pouco do seu pensamento... E assim todos os procuram. Nessa multidão de amigos sem nome há gente de todas as classes, de todas as camadas. Há brancos e negros, há ricos e pobres, há homens e mulheres, há cegos, há surdos, há leprosos...

E ele, o homem solitário, ouve esses gritos, atende a esses pedidos, conforta esses abandonos. À proporção que se torna mais só, sentimos que a sua faculdade de solidariedade humana se aperfeiçoa. Somente aquele que viveu na solidão, e se banhou nas suas águas dolorosas, soube conhecer o encanto misterioso e triste das almas e das cousas. Isolado, Humberto de Campos veio desenvolvendo, dia a dia, o dom de compreender os companheiros de peregrinação da vida. A cada um deles deu um pouco de amparo ou de afeto. Há uma atitude paternal nesse homem que apenas passou dos quarenta anos, mas ao qual a vida, pelo sofrimento repetido, já deu uma ancianidade augusta e venerável.

Este Humberto de Campos – amado de todos, ouvido por todos, procurado, glorioso, alto em sua imensa simpatia humana – é que eu quero que fique impresso em vosso espírito. É ele, sem dúvida, um dos grandes orgulhos do Brasil contemporâneo. E diante da sua imagem aureolada, eu desejava, apenas, lembrar a deslumbrada exclamação que outrora Gorki teve diante de Tolstoi:
– Vejam que homem maravilhoso existiu na terra!