Senhora Ana Maria Machado:
Vossa presença entre nós, hoje, é o consectário natural e mesmo obrigatório de um percurso pleno de afirmação literária da mais alta qualidade que, de há muito, transpôs nossas fronteiras. Esta é a vossa casa, que sempre amastes, como se evidenciou em vosso discurso na festa de aniversário da ABL, quando, neste mesmo salão nobre, recebestes há dois anos o prêmio maior desta Academia, o Prêmio Machado de Assis.
Sois a sexta escritora a ingressar nesta Casa que tangencia o mito no imaginário do povo brasileiro. Após a alteração regimental ocorrida em 1976, que cedeu afinal à insopitável decisão de acolher escritoras na Academia, aqui aportou, com sua firme personalidade e fina sensibilidade, a primeira imortal, a confreira Rachel de Queiroz, ícone de nossa literatura.
Em 1981, a ela se seguiu a doce romancista Dinah Silveira de Queiroz, que, depois de receber o Prêmio Machado de Assis, foi estimulada a ingressar na Academia, por Osvaldo Orico. O escritor paraense, com rara tenacidade, logrou a alteração regimental ansiada. É o momento de volver o olhar para Lúcio de Mendonça, a quem todos devemos a ideia de se fundar esta Academia. Na relação dos primeiros ocupantes possíveis das cadeiras da ABL, Lúcio incluiu o nome de Júlia Lopes de Almeida. Foi vencido duas vezes, mas pela imprensa insistiu na mesma tecla, em favor do ingresso de escritoras na Casa de Machado de Assis. O registro se faz necessário para repor nos trilhos a história desta conquista quae sera tamen (ainda que tardia).
Em 1987, a Casa se viu enriquecida de forma exponencial com a eleição de Lygia Fagundes Telles, esta mulher de riqueza humana ímpar, capaz de detectar os mais tênues fios condutores do humano existir. Celebramos no ano em curso os 30 anos de seu livro paradigmático, As meninas, e de outra efeméride significativa para a interminável coorte dos que a amam e admiram. Para ela, há um mistério em que estamos mergulhados, palavra-chave de seu itinerário, no registro crítico de Eduardo Portella. Lygia sentencia lapidarmente: “A obra de arte para mim é um imprevisto. Um grande imprevisto de loucura.”
Desde 1990, outra emérita escritora, Nélida Piñon, vem abrilhantando a presença feminina na Academia. Como brasileira recente, segundo se anunciou: “Chego à Academia”, disse ela, “trazida inicialmente pela paixão da linguagem e pela fidelidade à imaginação, este território pelo qual transita a liberdade.” Nesta sentença, está Nélida de alma inteira, ela a quem a Casa deve a ascensão à presidência, por primeira vez, de uma mulher, bem antes que a Académie Française se atrevesse a romper as barreiras do preconceito.
Em 2002, Zélia Gattai Amado trouxe para esta Casa a leveza de sua narrativa. Parece nos falar ao pé do ouvido, pois seu estilo coloquial situa o leitor quase como interlocutor. Impende recordar que sua presença, além de opulentar este cenário privilegiado das letras, constituiu ainda uma engenhosa e sábia maneira de reter entre nós o grande Jorge Amado.
Senhora Acadêmica Ana Maria Machado:
Ingressais neste recinto, pavimentado por centenária tradição cultural, em presença de vossos oito irmãos e de vossos filhos Rodrigo, Pedro e Luísa, além de amigos e colegas de lides literárias, artísticas e jornalísticas. É um excepcional flash da glória que vos acompanha o percurso iniciado há mais de três décadas.
Cuido adequado sublinharmos que tendes um compromisso com a palavra e sabeis preservar o tempo, secretando a inventividade de quem meteu a ombros uma obra ciclópica, com cento e quinze títulos publicados. Seguistes certamente a assertiva de La Fontaine, para quem “o sábio é administrador do tempo e das palavras”.
Talvez se possa inferir do amor que certos escritores devotam à língua pátria a sublimidade de seu estilo e a beleza de sua arte. Fincar as raízes da alma na profundidade do mistério de dizer e de escrever denota intimidade de si mesmo com a cultura que nos impregna a vida, com suas crenças, seus valores, sua tradição e seu ímpeto de criar voltado para o porvir.
Vós vos habituastes a uma fidelidade plena aos valores fundantes da bela língua que nos foi legada, sem incidirdes no equívoco de lhe superdimensionar a correção epidérmica em detrimento da espontaneidade de vossa pena ágil, coloquial e altamente criativa.
Compelida a imigrar, tivestes o cuidado de preservar vossos filhos da pressão dos idiomas dos países em que vos refugiastes, para mantê-los vinculados ao idioma que nos cumpre preservar e que vínheis cultivando com ternura filial e de que vos tornastes sacerdotisa. Sim, porque é de liturgia que se trata, quando nos defrontamos com o desafio de escrever, de expressar conceitos, sentimentos, perfis existenciais que ornam a paisagem humana.
Sempre soubestes conciliar o respeito devido à norma culta com a abertura à evolução da língua. Timbrastes em reiterar: “falamos português, sim, mas o português do Brasil... quero a língua brasileira, com sua flexibilidade, sua variedade, seu ritmo e sua dança, sua ginga inventiva, seu jogo de cintura, sua irreverência”. Isto porque tendes consciência de que “a linguagem não existe só para a comunicação, ela também serve para a expressão – o terreno da criação linguística”. Com isto se evita a transformação da norma culta numa camisa de força. Vossa obra é autenticamente brasileira, poreja intimidade com a nossa cultura, em seu dinamismo criativo.
Registro o paralelismo entre vós e a notável escritora Rachel de Queiroz, que, há meio século, respondeu a um editor português que queria publicar um de seus romances, afeiçoando-o ao linguajar lusitano. Naquele então, avançou a aureolada confreira: “sua língua é um patrimônio tanto nosso quanto seu.” Para concluir: “esses pronomes mal postos, [...] essa língua que lhes revolta o ouvido, é a nossa língua, é o nosso modo normal de expressão, é – ouso dizê-lo – a nossa língua literária e artística”.
Da palavra devemos aproximarmo-nos com o desvelo e o carinho ditados pelo amor essencial ante o mistério inefável da expressividade humana em suas variegadas formas de comunicação. Forçoso é convir que o abuso de palavras, ao explicitar um certo vezo de exibição ou um taedium vitae muito contribuiu para a sua desvalorização. A palavra de que cuidamos concerne ao patamar superior da significação, da mais-valia de sentido, da sintonia com a existência humana em suas manifestações superiores. Pedro Abelardo, famoso filósofo que viveu entre os séculos XI e XII, assentia: “factis non verbis sapientia se profitetur” (“a sabedoria tira proveito dos fatos e não das palavras”). Tal compreensão, encontradiça também em Terêncio, Cícero, Sêneca e mesmo em escritores consagrados nas línguas modernas, parece olvidar o étimo do vocábulo, de vez que palavra, parola, parole, palabra promanam do latino-cristão parábola, cuja densidade significativa a cultura tanto reconhece e mesmo enaltece. Tal é o peso da palavra que vale reiterar, com Benedetto Croce, que a palavra é sempre criação fantástica, poesia, e cada consideração não-estética da palavra conduz a algo que não é linguagem mas um ato econômico. Em que pese um certo exagero, é compreensível a tese, a que se poderia acrescer a conclusão da escritora Flora: “loquor, ergo cogito et sum” (falo, logo penso e existo). Ou, ajustando ao ato de escrever, diríamos “scribo, ergo sum” (escrevo, logo existo).
Há um encantamento na origem do conhecer e do sentir, do querer e do amar. A admiração é o estágio inicial da abordagem do real, segundo Platão. Vós bem o compreendestes, ao nos revelardes o quanto tal atmosfera perpassou espíritos de escol nos albores de vosso percurso existencial. O fascínio pela narrativa esteve na raiz de muitas vocações literárias. Recordastes o deslumbramento de Carlos Drummond de Andrade com a leitura de Robinson Crusoe, de Clarice Lispector com Reinações de Narizinho, do vosso diretor de tese, mestre Roland Barthes, mergulhado na mitologia grega com seus argonautas. Vosso antecessor na Cadeira número 1, o saudoso mestre Evandro Lins e Silva, também por vós lembrado nesta evocação de encantamentos literários, mencionava o quanto ficara marcado pelos contos de fadas maviosamente narrados por sua genitora.
Monteiro Lobato abriu o espaço inaugural da presença robusta da literatura infantil entre nós. Sozinho vendeu, em 1943, mais de um milhão de livros, cifra esta, hoje, amplamente sobrepujada por Ruth Rocha, por vós – com mais de quatorze milhões de exemplares – e de muitos escritores voltados para a literatura infantil, como Ziraldo, Lygia Bojunga, e tantos outros.
É curial ligar-vos a Monteiro Lobato, o pai da literatura infantil, como se dele fosseis herdeira. Vossas preocupações não coincidem. Reconheceis que ambos se voltam para questões sociais, políticas e filosóficas, e que a discussão de valores éticos está presente em vossa obra e na do insigne escritor paulista. Mas vós bem demarcais as diferenças: “Ele (Monteiro Lobato) tinha um vasto, oportuníssimo e maravilhoso projeto pedagógico para o Brasil. Eu... apenas quero explorar as potencialidades da linguagem e da narrativa... Fazer brincadeira estética.” Seguramente estamos em presença de perfis diversos, mas a vossa modéstia se imiscui no debate, uma vez que vossa forma de vos valerdes da palavra, em grau de crescente complexidade, configura uma intenção marcadamente pedagógica que não é de confundir-se com um didatismo esterilizante. Vós mesma o sublinhais, ao mencionardes a série Mico Maneco como “uma proposta de alfabetização” nela embutida. E que são vossos ensaios sobre a relevância da leitura senão o fruto de um compromisso com a educação de crianças, adolescentes e adultos para o mundo encantado dos livros, de suas histórias, estórias, fantasias que tanto contribuem para os voos do espírito?
Não raro vos referis ao texto, às texturas, aos fios que tecem vossas histórias. Parece tudo haver principiado no instante em que vós e vossa filha Luísa acompanhastes, maravilhadas, a obra reiterada através dos tempos pela aranha. Sim, a teia bem expressa o trabalho persistente de quem, como vós, ousa criar no universo mágico e instigante da literatura. É esta constante busca de integração com a natureza que vos alumia a construção artística a que vos devotais com reconhecido talento. Vosso constante convívio com a terra, os animais e as plantas as transformaram em convivas sempre bem-vindos em vosso banquete das letras. E sucedem-se as descrições da natureza, a revelar invulgar conhecimento de árvores, de peixes, do mar diuturnamente presente em vossos escritos, minúcias da aurora e do crepúsculo. Enfim, o homem não se distancia de seu chão, mas se vê integrado nele, nesta permanente participação que tanto nos enriquece e afasta do beletrismo estéril. Comentastes com Roland Barthes que, em nossa língua, falamos em texto com o pensamento em tecido, valemo-nos das palavras novelo e novela.
Vós bem reconheceis o valor perene dos clássicos e ao tema dedicastes vários ensaios. Para vós, “clássico não é livro antigo e fora de moda. É livro eterno que não sai de moda”. Citando Ítalo Calvino, dissestes que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. É uma mina inesgotável à qual recorremos com a ânsia de quem descobre ou redescobre trilhas que nos ensejam maior penetração em nós mesmos e em que tudo e todos que nos circundam. Este conúbio entre a base de sustentação clássica da cultura e o aporte da modernidade vos seduz e vos sinalizou a necessidade de adequar os fundamentos aos passos novos em direção ao futuro.
Poucos escritores vêm entre nós realçando com tanto vigor e brilho o valor da leitura na humanização da vida, como vós. Sois, como Alfredo Bosi, uma paladina da cultura de resistência, contra o não das restrições arbitrárias e a imposição do sim dado a obras destituídas de valor, mas postas ao lado dos best sellers estrangeiros para disfarçar a censura a obras de autores nacionais de real peso literário.
Vós vos valeis de uma metáfora bem ajustada à escrita como ato de tecer, de fiar, de bordar. E aqui avulta a intertextualidade de que lançais mão, como é o caso de Bisa Bia Bisa Bel, em que há patente inspiração de A bolsa amarela, de Lygia Bojunga. Sempre em obediência a uma reinvenção. Nota-se uma aproximação com a oralidade, o que facilita o acesso do leitor ao texto e lhe confere uma vida espontânea, longe do artificialismo que malbarata muitas obras infantis. Não teríeis alcançado o patamar invulgar de contadora e reinventora de estórias que tamanha atração exercem em crianças, jovens e adultos, não fora o convívio amiudado e enriquecedor de vossas avós Ritinha e Neném. Ao pé da lareira, por assim dizer, elas vos transmitiram toda uma tradição oral contida em relatos de elevado corte no imaginário. Já era o bosquejo de vossa ascensão literária que o País, orgulhoso, celebra. Bisa Bia Bisa Bel “brotou da necessidade de explicar para o vosso filho Pedro uma certa avó Ritinha, contadeira de histórias”. Daí para o vosso sonho foi um passo. Sonhastes que “no lugar do coração tinha um retrato oval da avó”. Acordastes com a primeira frase da história: “Sabe? Vou lhe contar uma coisa que é segredo. Ninguém desconfia. É que Bisa Bia mora comigo.” É o encontro de gerações, unidas pela humanidade e pelo afeto que lhes superpõem as vidas e as vivências. É emocionante realçar que o gap geracional não obscurece a magia da intersubjetividade entre os seres que, separados pelos anos, coexistem na permuta de suas riquezas. Vivi instantes privilegiados de emoção que não saberia transpor para o papel, tal a beleza da concepção e a arte estilística que dimanam do vosso texto pleno de humanidade.
Nessa obra magistral livrais o papel infantil de sua subalternidade a adultos autoritários. Trata-se do resgate da memória coletiva. A reescritura da História se vos apresenta como uma tarefa que suplanta as singularidades. A pessoa humana avulta em sua individualidade, mas é herdeira de tradições, que conglomeram valores, crenças, ideários. Neste sentido, a sociabilidade tem cunho marcadamente ontológico.
Permiti que vos aqueça a memória com o relato de um certo paralelismo entre vós e renomado escritor inglês. Robert Browning, aos 5 anos, surpreendeu o pai lendo um livro e indagou o que estava lendo. Em vez de desvencilhar-se da criança, devolvendo-a aos seus brinquedos, seu culto pai montou o cenário da Ilíada e, a partir daí, fez o menino percorrer a imortal obra de Homero. Surgiu assim um gigante das letras universais. Por igual, vosso ilustre pai, o ínclito homem público Mário Martins, abriu-vos as portas da literatura, aproximando-vos do romance maior, Dom Quixote, de Cervantes. Foi o ponto de partida para a grande decolagem literária que extasia os vossos coetâneos de todas as idades. Isto porque a vossa obra, em grande parte nascida aparentemente do desejo maior de encantar os espíritos em tenra idade e aqueles que se aprestam para pervadir o espaço reservado aos adultos, se volta decididamente para o universal que mal se encobre nas densas sortidas do imaginário. Vossas obras se abrem de par em par para leitores de todas as idades, uma vez que o convite que nos dirigis concerne à condição humana envolvida em arte de elevado corte. Penetrar na riqueza desta condição invariavelmente vos vincou a alma sensível e nos vem propiciando momentos de encantamento, conquanto o vosso estilo nem de longe se escude nas filigranas lingüísticas a que se afeiçoam alguns escritores carentes do real intento ou do talento de se comunicarem com seus leitores. Antes, almejam fechar-se em si mesmos e monologar num refúgio que lhes esvazia a alma.
Vós nos vindes enriquecendo o espírito mercê de textos de literatura para crianças e jovens, romances, ensaios, dissertação de mestrado e tese de doutoramento. Principiastes a publicar em 1976. Foi quando, em Paris, fostes escolhida por Roland Barthes para integrar um pequeno e privilegiado grupo de doutorandos. Desde aquele então, vós vos adestrastes nos meandros da semiótica, da linguística e esmiuçastes a rica e inovadora linguagem de Guimarães Rosa, marco de nossa literatura.
Vossa tese revela conhecimento profundo da moderna semiótica e da linguística. Trata-se de “uma intraleitura da obra de Guimarães Rosa”, como frisa Houaiss. O Nome próprio não se situa no plano impreciso do mero acaso, mas desempenha papel singular e é mesmo inspirador da trama em que está inserido. O Nome questiona o texto, manifesta um sistema de significação e, pois, um papel classificador. Dissestes que o Nome se desintegra em pequenas unidades de significação, para atestar que eles abrem espaço para a riqueza de sentido do texto literário. É um leque de significações e mal encobre, com suas associações, condensações e deslocamentos o vínculo do texto com a elaboração do sonho na descrição freudiana. Na esteira de vosso pensamento, concluístes que “o que nos revela uma análise da escrita rosiana é que, no engendramento de seu texto, no trabalho ativo da escrita, o Nome próprio (particularmente o dos personagens) desempenha um papel fundamental: ele guarda dentro de si, sob um aspecto latente, uma profusão de semas que se vão manifestando aqui e ali, através do texto”.
Em 1977, veio a lume o vosso primeiro livro infantil, Bento-que-bento-é-o-frade. Já nele se encontra bem nítida a vossa face rebelde. Em Passarinho me contou desfila ante nossos olhos atônitos todo um cortejo de dados objetivos de nosso próprio percurso nacional. Em Do outro lado tem segredos, o dealbar da curiosidade que vos é permanente desperta para captar a riqueza do real, a consciência do mistério que suplanta a visão imediata e perfunctória tão convidativa e tão destituída de sentido para um olhar imerso na densidade do ser. Prestastes comovida homenagem a José Lins do Rego em O menino que virou escritor. O centenário de Portinari também é lembrado em Portinholas. Abrindo caminho revela para crianças e jovens todo um roteiro de leituras possíveis, despertado com a menção aos grandes da literatura mundial. Bem original é a proposta de jogar com as palavras, unindo-as pelo som que as irmana ou a composição nelas atestada, como se verifica em Um avião e uma viola. História à brasileira nasceu de uma noite sem luz elétrica, em companhia de seis meninas. Passastes a lhes contar histórias e, “quando o fornecimento de energia elétrica foi restabelecido, elas não queriam que se acendesse a luz. Preferiam fazer de conta que não havia televisão, vídeo, nem videogame – desde que houvesse histórias”. É um turbilhão de modalidades de narrar, de recordar, de sentir, de captar a melodia do mundo mercê da beleza e riqueza das palavras. Certa feita, ao visitar uma escola, sobreveio um comentário risonho de uma menina de sete anos a propósito de vós: “Ela (Ana Maria) vive tanto no meio das palavras que, ao falar, ela rima”.
É mister sublinhar que a literatura infantil na América Latina vem revestida de um sinal inequívoco de subversão, apresenta muita vez o sinete inconcusso da denúncia. A crítica literária despertou majestosamente para a nossa literatura infantil, designadamente em 1982, quando foi concedido a Lygia Bojunga o prêmio maior deste relevante segmento, o Hans Christian Andersen. E vós por igual lograstes alcançar esta glória imarcescível, no ano 2001. Firmastes o País como palco iluminado da melhor literatura infantil dos últimos tempos.
Há muito, porém, que lamentar a barreira que os povos desenvolvidos contrapõem à riqueza de outras culturas. Referistes que a falta de traduções, especialmente para o inglês, gera um crescente distanciamento cultural entre os povos. Recentemente, pesquisa nos deu conta de que, de cinco mil títulos saídos de editoras americanas, apenas cinquenta e quatro foram traduzidos. Como frisastes, na ocasião, registra-se, neste caso, uma “inabalável convicção da superioridade etnocêntrica”.
Como sublinha Maria Nikolajeva, “consciente ou subconscientemente, vossos leitores lhe reconhecem que esquadrinhais questões como poder, autoridade, injustiça social, preconceitos de raça e de sexo”. Não se trata de alimentar o veio meramente didático, senão acima de tudo se alça a força de vossa arte que, como tal, não aceita a imposição de textos concebidos nas oficinas de normas e princípios que vos orientariam os passos, quase sem compromisso com a arte em si mesma.
Vós recebestes a forte influência de escritores franceses que se firmaram no pós-Segunda Guerra Mundial, como Sartre, Camus e Malraux, depois de haverem se empenhado na luta pela resistência. Em Camus, encontrastes uma alma gêmea no concernente à maneira de definir o sentido da vida do escritor. Haveria razão suficiente para o engajamento do escritor, ou deveria ele cingir-se ao plano da pura estética? Conforme salientastes, para Camus “nenhum escritor deveria colocar sua obra a serviço de nada que seja exterior a suas próprias necessidades criadoras”, até porque “uma obra de arte é senhora de seu criador”. Isto não eximiu o romancista francês de inibir o escritor de “ter uma posição definida a respeito de questões sociais e políticas de seu tempo”. Arte e engajamento moldam o perfil do genuíno escritor.
Guiados pela vossa pena, percorremos os espaços criativos da infância, os meandros complexos da adolescência, conduzindo-nos suavemente pelos caminhos de que não nos deveríamos apartar tão radicalmente com o advento da maturidade. Antes, vós preservais o hálito de eternidade presente no imaginário das crianças e dos jovens, cuja mirada volvida para o porvir constitui aceno e mesmo conselho indireto endereçado a quantos, entrados em anos, por vezes se acomodam e perdem o fio luminoso da criatividade e os anseios prenhes de imaginação do início da caminhada existencial.
Vós nos propondes a percorrer um mundo que rompe as barreiras etárias, porque sintonizado com a consistência ontológica do ser humano, sem prejuízo da indispensável evolução.
Este mérito vos pertence e seguramente se posta no limiar de vossa esplendorosa obra, que hoje vos situa no pedestal da literatura infanto-juvenil, da ficção romanceada e da robusta ensaística, de que é exemplo lapidar vossa tese sobre Guimarães Rosa. Carlos Drummond de Andrade, do alto de sua cátedra literária, emitiu juízo de valor sobre vossa tese, que equivale a uma consagração definitiva, ao escrever: “só lamento duas coisas. Que Guimarães Rosa não esteja vivo para ler e que você não tenha feito isso com uma obra minha”.
O surpreendente é que vós aliais a sutileza e a acuidade especulativa no trato de temas literários com a leveza de vosso estilo, a incomparável capacidade de vos comunicardes com o leitor, que se sente atraído pela familiaridade do diálogo em que se transformam as leituras de vossas obras, com participação crescente de quem penetra em vossos textos. Vossos leitores são imantados pela linguagem coloquial, pela riqueza metafórica, pelo vocabulário ajustado à temática, pela reconstituição de períodos históricos, com todo o seu cortejo de hábitos, valores e crenças, a atestar a amplitude das pesquisas necessárias à elaboração artística a que vos devotais com paciência e competência beneditinas.
Basta infletir a nossa atenção para os vossos romances para sentirmos a força de vossa narrativa. A audácia dessa mulher, por exemplo, nos transporta para um clima machadiano, atestando elevado patamar de compreensão da imbricação da ficção com a realidade. Tropical sol da liberdade imerge na relação tortuosa entre mãe e filha, nos idos da perseguição política. O mar nunca transborda faz desfilar cinco séculos de história, com seus costumes e valores, mar que é metáfora preferencial de vossa caminhada literária. Canteiros de Saturno, romance que tanto me emocionou, nos fala do tempo, tema recorrente na literatura universal, que encontrou em Marcel Proust o seu mais qualificado intérprete na modernidade. Não há filósofo digno deste nome que dele não se haja ocupado, mergulhando nas águas profundas e tortuosas de uma temporalidade que nos limita e da qual não escapamos, pois nos cinge, mas também parece convidar-nos para um altiplano em que pomos muita vez as nossas complacências e nos aventuramos a esperar superações havidas como utópicas ou como finalidade mesma do humano viver e conviver.
A Filosofia convive ora com as ciências, ora com as artes. São tendências que pendem de períodos culturais em que uma ou outra face do real ou do imaginário parece preponderar. Muita vez nos inclinamos para o sentir de Simone de Beauvoir, para quem “se a descrição da essência concerne à Filosofia propriamente dita, somente o romance permitirá evocar na sua realidade completa, singular, temporal, o surto original da existência”. Cuido que vós vos poríeis de acordo com a escritora gaulesa.
Falemos de vossa formação. Começastes pela pintura, seguindo o curso de Aloísio Carvão, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Aí vos encontrastes, ao descobrirdes, deslumbrada, que vos poderíeis expressar sem racionalismos. Fizestes exposições, percorrestes os estágios inerentes aos artistas do pincel. Frequentastes ainda um curso intensivo em pintura no Museu de Arte Moderna de Nova York, não sem aproveitar a viagem para fazerdes acrescer à experiência, matriculando-vos em outro curso, de História da Arte. Compreendestes, após doze anos de dedicação à arte pictórica, que vossa postura era mais emocional que conceitual. Sem abandonardes a arte inicial de vossos sonhos, a genuína paixão se entremostrava claramente, a paixão que, segundo Fénelon, é a alma da palavra. Estava emergindo do casulo a grande escritora que sois.
Vivestes o clima cultural que então criativamente nos modelava o perfil artístico. Programas diários de música na televisão escancaravam as portas para a MPB e o rock brasileiro. Bossa-nova e jazz enriqueciam o script. Os Beatles pontificavam, além da Jovem Guarda, a que se juntaram em prestígio Elis Regina, Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano, Gil, Betânia. Vale recordar o apreço especial de Chico Buarque por vós, ao escrever: “faço uma música e penso: será que a Ana Maria vai gostar dessa?”
À época, o Teatro Opinião era palco de outras afirmações artísticas que comoviam a vossa geração. O cinema igualmente comparecia com presença marcante de Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues e tantos outros que firmaram o nome do País em telas de outros continentes. Vossa obra Alice e Ulisses está para ser transformada em filme. Era uma época em que os artistas se agitavam e faziam jorrar a criatividade bem brasileira. E vós íeis absorvendo os jatos da torrente cultural que suplantava os limites impostos pelos então donos do poder.
No início de vossos passos, nem pensáveis em escrever. Mas vínheis de rica vivência como professora de língua e literatura em colégios e universidades. Lecionáveis Português e Literatura nos Colégios Santo Inácio, Our Lady of Mercy, Princesa Isabel e no curso Alfa, do Itamaraty. Na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalhastes como auxiliar de Augusto Meyer, ministrando aulas de Teoria Literária, e, com Afrânio Coutinho, de Literatura Brasileira. O exercício da docência vos atraiu graças à “alegria de compartir descobertas com a juventude” e, ao que tudo indica, obedeceu ao sentir de Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina. Mas quem, de repente, aprende.” Eis o traço de união entre a fase de dedicação ao ensino, como interação entre docentes e discentes, e a abertura de espírito a desaguar na literatura, como forma de diálogo constitutivo de vós mesma e de vossos leitores. É de registrar-se a vossa palavra, que veio bem do fundo da alma: “O que eu sou mesmo, irrecusável e para sempre, é leitora.” A leitura como alimento do espírito, como vigilante sentinela do espaço da memória, certeza de enriquecimento interior.
Corria o ano de 1969. Aí emergiu o desafio decisivo: o convite para escrever para crianças. Havia nascido a revista Recreio, que tinha como editora Sônia Robato. O convite colheu de vós a mesma resposta que já lhe dera Ruth Rocha, outra grande escritora de textos infantis: “mas eu nunca escrevi uma história na vida”. “É justamente por isto que a estou convidando”, redarguiu Sônia, incisiva. Vossa primeira história saiu torta, artificial, moralista. Não era o que a revista Recreio esperava, nem desejava. Mas vós não sois de desistir, os desafios vos compelem a enfrentá-los e vencê-los.
É relevante assinalar, com John Rowe Townsend, que “antes que existisse livros para crianças, era preciso que houvesse crianças”, com sua especificidade, seu modo de infantil de ler, de reagir aos textos postos à sua disposição. Na origem, estão as histórias oralmente transmitidas de geração em geração que, de resto, estão no dealbar de vossa vocação literária. Não se poderia idoneamente olvidar o poderoso influxo sobre vós exercido pelo vezo familiar de repassar estórias de geração em geração, marcante hábito em vossa família. Vossa mãe, vossos avós vos fizeram viver e sorver intensamente textos literários que acabariam por se transformar em moradas perenes de vosso filão imaginário. Daí a decolagem para o ato de escrever foi um passo, nascido desta fecunda pedagogia da leitura em que estais empenhada há várias décadas.
Com John Fowles ligais o livro à árvore. O enraizamento deste, sua capacidade de oferecer abrigo e sombra, a variedade de formas de vida – que nela e à sua volta se aninham – bem dizem da riqueza do livro, suas ideias e valores, sonhos e fantasias, memórias e lirismo, nostalgia e criação, beleza e humanismo.
É recorrente a preocupação ecológica em vossos escritos. A natureza se manifesta em vosso caminhar, a par de vossa sensibilidade muito particular para o que há de humano no ser homem. Dizia Hans Meier a propósito da riqueza da filosofia medieval: vista de longe, ela oferece a impressão de monotonia, de perto é que detectamos a riqueza e variedade de suas correntes em que o intelectualismo, o voluntarismo, o misticismo, o nominalismo, as formas de escolástica e seus momentos se espraiam e se estendem por um milênio. Assim são os livros que, bem frequentados, ora nos abrem clareiras nas densas florestas, tudo à disposição de quem se aconchega em seu regaço na busca de deleite e ânsia de beleza, de verdade e de bem.
Com amor, mulheres anônimas geraram a riqueza coletiva deste acervo de narrativas que modelou gerações inteiras de leitores. Aí se criam histórias infantis desvinculadas de quaisquer lições pré-fabricadas na oficina da mediocridade, de que constituem exemplo marcante as obras dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen. Foi, porém, John Locke quem, por assim dizer, inventou a criança, em seu Thoughts Concerning Education, em 1693. Frequentemente, livros escritos para adultos, por sua beleza literária, acabam se transformando em arquétipos de literatura infantil ou juvenil, como The Pilgrim’s Progress, de John Bunyan (1678), Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1719), e Gulliver’s Travels, de Jonathan Swift (1726). Miríades de obras encantam crianças e jovens, que após suplantarem a adolescência, se cingem às leituras obrigatórias de livros essenciais à sua profissão, quando ainda leem. O que causa triste hemorragia no afã inicial de ler. A escola parece não se dar conta de seu papel, no estímulo que deve dar aos seus alunos para que se habituem a ler e, após a aquisição do tesouro inestimável, atinjam o nível ideal da paixão de ler. Teme-se aqui e ali o desaparecimento do livro. À questão devotastes vários ensaios em que, somente de longe, admitistes a tese e, ainda assim, unicamente por este vezo bem vosso de discutirdes todas as hipóteses num permanente atestado de abertura do espírito. Ainda que tal desenlace indesejável viesse a ocorrer – e que vós não acolheis – concluístes por afiançar alto e bom som: “Livros podem morrer. O que não vai morrer é a literatura.”
A questão básica a cuja análise emprestastes o melhor de vossa argúcia consistiu em saber se há ou não uma ideologia explícita ou subjacente aos escritos. Emerge, com força insopitável, vossa tese basilar: a ideologia está presente ao obrar literário, pois o escritor é um ser situado, alguém que sorveu sua formação numa época, em livros, em valores que pervadiram seus espaços mais íntimos, cinzelando-lhes o perfil intelectual, moral, estético. O problema nuclear promana da pergunta se a obra está ou não a serviço da ideologia, pois esta se vincula necessariamente ao mundo de quem escreve. Subterraneamente, sua atuação é curial, faz mesma parte do tecido do escritor. Artificialmente imposta, gera livros de que não passamos das primeiras páginas, ou então, depois de lidos, não mais figuram em nossa evolução intelectual. Obras que fizeram as delícias de multidões, como as Mil e uma noites, estão repletas de preconceitos racistas e sexistas, embora se hajam imposto aos leitores pela elevada qualidade de seu estilo, de sua beleza literária. Há que se considerar que isto se deve ao fato de que os autores de tais escritos se prendiam aos preconceitos correntes, que separavam os habitantes do hoje chamado Primeiro Mundo, de homens brancos, educados em escolas de elevado porte, dos negros, pardos, mestiços, enfim, simplesmente havidos como seres inferiores. Cuidais indispensável denunciar a ideologia dominante nesses livros, sem cederdes à tentação de lhes negar o valor literário, sem perderdes os benefícios de sua leitura. É inconcussa e imperiosa a distinção de tais planos, porque, como dissestes, “não existe objeto escrito que seja ideologicamente inocente”. Impende realçar que o leitor igualmente traz em sua bagagem todo um cortejo de valores e vivências, eventualmente de fortes preconceitos, que integram a tessitura da relação autor-leitor. Sua leitura estará carimbada com seu visto de embarque para adentrar-se no mundo encantado e convidativo. Toda leitura é leitura de alguém que impregna o ato de ler de seu próprio universo interior. Não raro as leituras e releituras se modificam em função dos momentos em que antecipamos as narrativas, dando-lhes o colorido do nosso possibilismo subjetivo. Isto permite atribuir sentido próprio à nossa leitura individual e autoriza a recriação pessoal dos textos lidos, numa nova modalidade de interação entre autor e leitor e em inéditas e criativas relações do leitor com o mundo. É imperioso evitar os escolhos de uma utilização mercantil do rico filão literário a ser posto à disposição de crianças e jovens. Cumpre obviar os terríveis inconvenientes do mercado escolar e do mercado de massa, frisais amiudadamente. A literatura se afirma mesmo pedagogicamente como uma forma de rebeldia, de autonomia do leitor, de contestação ao politicamente correto. Insistis em abrir os espaços da reflexão aos leitores, retirando-os da passividade convidativa. Vosso rosto literário resultou magna parte de vossas leituras. Sois uma leitora voraz. Deveis aos livros o que viestes a ser.
Vós haveis concluído que existe uma maneira feminina de escrever e de ler. Sois, porém, mulher de feminismo aguçado, sem os ademanes daquele travestido de machismo artificial. Tendes transparente compreensão de que “o projeto feminista é da humanidade, não só da mulher”. O que nada obsta a que acrediteis na diferença dos perfis entre homem e mulher e bem saibais administrar as energias e capacidades, os atributos e as virtudes do mundo da mulher. Apontais sem rebuços as qualidades da mulher: paciência, coragem, determinação, amor, simplicidade e capacidade de conviver, e sobretudo compaixão. Tais epítetos vos ornam a biografia, com tinturas nítidas de inconformismo, de intuição dos caminhos fecundos por explorar, da opção pelo silêncio criativo e, portanto, da fuga ao rumor dos elogios protocolares, enfim da vossa autenticidade, da vossa fidelidade a valores, sem a rigidez dos espíritos caricatos a prelecionar uma axiologia impositiva e preconceituosa. Sois um espírito aberto à modernidade, à natureza e à riqueza humana. Certa feita expressastes, em entrevista, e de maneira espontânea, singela e direta, o mundo que vos atrai: “gente, mar, sol, natureza em geral, música, fruta, salada, cavalo, dançar, carinho” E bosquejastes o vosso próprio perfil: “Tenho em mim uma mistura muito esquisita, misto de rebeldia meio arrogante e petulante, com uma certa sensibilidade deslumbrada.” Revelais, pois, uma personalidade rebelde, infensa a acomodações. E vos deixais guiar pelo pensamento de John Kenneth Galbraith: “Pretendo me divertir e seguir minha filosofia de vida: levar conforto aos aflitos e afligir aqueles que vivem com excesso de conforto.” Há em vosso interior um impulso para vos situardes “contra a corrente e contra o corrente”. É mesmo o título de um de vossos livros que enfeixa conversas sobre leitura e política.
Como radialista e jornalista, chefiastes o departamento de jornalismo da Rádio Jornal do Brasil e no Jornal do Brasil criastes uma seção pioneira de crítica da produção cultural para crianças; e, na PUC, o primeiro curso de Literatura Infantil do país em nível universitário.
Vencidos os produtivos anos setenta, a década seguinte será, de outra forma, para vós a década do livro, com a fundação da Livraria Malasartes, a que vos dedicastes durante dezoito anos, totalmente voltada para a literatura infantil.
É mister frisar que vós, com jeito para escrever, como bem o reconhecíeis, já havíeis vencido a barreira de uma tese de doutoramento. Vossa cultura literária, com fulcro numa consistente semiótica e linguística, balizara os vossos passos em terreno de difícil praticagem, em que a espessura dos textos constitui estímulo adicional.
A arte da palavra sempre vos seduziu o espírito inquieto e criativo. Julgais mesmo que “o maior milagre humano continua sendo a linguagem”.
Aqueles que nos moldaram múltiplas visões de mundo e a percepção da realidade, ainda em suas formas singelas, nos ensejaram nossa própria construção pessoal, inoculando em nosso espírito os germes da cultura. Vieram de longe tais pioneiros e, de forma criativa, firmaram o primado do espírito. Vós vos juntais a esse exército libertador do homem ao asseverardes: “trago uma palavra vinda de longe, renovada pela minha própria voz – palavra que se recusa a morrer, insistindo na necessidade invencível de transpor distâncias no tempo e no espaço”.
A rigor, vós não vos preparais de antemão para escrever livros especificamente destinados às crianças. Partilhais o sentir de C.S. Lewis: “clássico infanto-juvenil é aquele cuja primeira leitura pode ser feita na infância”. É manifesto o preconceito atinente à literatura infanto-juvenil. Muitos adultos não a sabem ler, nela não captam a universalidade que aí se encontra como em terra nativa. São lições imorredouras de vida, sem as farpas afiadas de um cediço moralismo, da morale close, de que cuida Henri Bergson. É a vida que pulsa numa união entre o real de que muitos adultos fogem e o imaginário a transbordar a profundidade do humano existir, muita vez recheado de fina e doce ironia. Quem não é capaz de perceber as nuances e modulações dos escritos preferidos pelas crianças que já sentiram a atmosfera diáfana da imaginação literariamente estética ainda não despertaram plenamente para a vida e, assim, não encontraram uma perene fonte de alegria e de prazer. Vossos escritos não têm destinatários definidos. A arte se abre de par em par à beleza que, no dizer de Dostoievski e, mais tarde reiterado por Soljenitsyn, salvará o mundo. Não vos atraem os arreganhos calcados nas certezas apodíticas. Vós bem sabeis que elas se estreitam nos descaminhos do fundamentalismo, seja ele político ou religioso. Ouso dizer que vós palmilhais as estradas amplas e luminosas da verdade. É com ela que tendes compromissos. Caminhais de mãos dadas com ela. Os que respiram a atmosfera aparentemente remansosa das certezas carecem da indispensável leveza de ser, da consciência de que as âncoras especulativas mais sólidas são encontradiças nos terrenos infensos à cristalização dos saberes. Navegais antes no mar das flutuações variáveis, na convicção de que a rigidez do espírito não se compadece com a grandeza da criatura com proveniência acima da mera fenomenologia do cotidiano.
Para vós, atrevo-me a afiançá-lo, a verdade é uma luz que, conquanto distante, se avizinha sob a égide da arte. Vosso compromisso com a verdade se vincula essencialmente ao que firmastes com a arte, pelo que não vos deixais seduzir pela fácil popularidade, pela lei inconsistente do mero sucesso. Sabeis, com base em vivências dolorosas – o exílio, a doença – que a condição humana é fascinante sempre que suplantamos a epiderme do real e mergulhamos na densidade do mistério de ser. Daí a vossa firme decisão de preservardes a vossa visceral intimidade, num resguardo necessário à criatividade, que jamais emerge no bulício dos aplausos, nesta infantil busca de simplesmente aparecer, no que seria uma distorcida hermenêutica da filosofia de Berkeley, com o seu princípio “esse rerum est percipi” (o existir das coisas consiste em serem percebidas). Os espíritos de escol sabem o pedágio oneroso que pagam à desintegração de si mesmos sempre que fogem do silêncio interior, em que se abastecem os que cuidam do aprimoramento humano antes do que ao sucesso episódico e infantil. Já há três séculos, Pascal nos advertia de que o grande mal consistia em não saber o homem viver entre as paredes de seu quarto.
Sabeis que a vida é incerteza e risco, como o proclamou Peter Wust, em seu livro título. Não raro tendes reagido ao desafio do existir mercê de abertura para o outro, nesta reciprocidade de consciências que molda o ser pessoal, sempre respeitando as diferenças e assinalando a inadiável afirmação da tolerância.
O verdadeiro escritor, e vós o sois superlativamente, é um inventor de linguagem. Descobrir as palavras que traduzem a complexidade do ser e do existir traduz insofismavelmente a própria compreensão dos desafios que nos são lançados à face nesta senda em que tudo parece tornar-se obstáculo a nossos passos e, portanto, ensejo para todas as afirmações e para todas as negações. São os instantes aparentemente fugazes e fugidios em que a vida que temos expressa o ser humano que somos. Invenção de linguagem é criação diuturna da própria construção pessoal, é conatural ao ato de ser que se manifesta na ação. Neste sentido, a vossa história é de uma riqueza sem par, pois atingistes o elevado plano de um estilo que parece fluir de todos nós, quando na verdade avulta em vossos escritos com a simplicidade inerente à perfeição possível, vele dizer, à perfectibilidade que incessantemente buscais. Longe de vós a torre de marfim, o ensimesmamento narcisístico. Cuidais necessário infletir na ação o conteúdo das palavras e valores que cultivais. Sois fiéis ao dizer do Padre Antônio Vieira, a quem tanto devemos culturalmente. Mestre da língua e expressão superlativa do barroco em nossa literatura, consoante nesta Casa proclamou, com competência e paixão, Sergio Rouanet, Vieira escreveu: “O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações dão o ser ao pregador.”
O vosso roteiro tem sido possível em virtude da aguda consciência de que os saberes não são estanques, de que vos incumbe palmilhar estradas de conteúdo diversificado. É bem nítida em vossa obra e em vós mesma a abertura para, além da literatura, a linguística, a semiótica, a filosofia da linguagem, a filosofia ut sic, a sociologia, a história, como estuário de hábitos e costumes, crenças e valores. Isto sem falar no engajamento político. Adotais a visão global e não globalizante, graças à qual theoria e praxis, ação e pensamento se ajustam, sem deméritos reciprocamente dardejados. Não há surpresa em haverdes recordado a assertiva de Sergio Buarque de Holanda de que se pode falar de uma “aversão do brasileiro à economia”. Colhestes do historiador ilustre a ideia de que a economia integra o todo cultural, e bem avisados andariam os que se distanciam do real concreto e se refugiam numa retórica vazia, quando sérios desafios nos abalam a consciência e apenas cruzamos os braços.
Bem sabeis que a interdisciplinaridade se vem impondo gradativamente aos espíritos mais atentos à complexidade do real. Daí a vossa obra refletir esta diversidade de aspectos que tanto a enriquecem e que resultam da consciência de que os saberes não se estratificam, não se cristalizam, mas permeiam todo o múltiplo universo que intentam explicitar. Estou convicto de que vivemos epistemologicamente um momento rico de transição de uma tênue interdisciplinaridade para, adiante, modelar uma transdisciplinaridade. Só então caberá aos pensadores de um futuro, talvez não muito distante, edificar uma epistemologia da convergência, a partir da antessala de uma incipiente convergência epistemológica. Isto porque não há unicamente no cosmo buracos negros. Identificamos timidamente alguns cones de sombra no amplo estuário dos saberes e cremos que neles pode residir o potencial de saber do homem dos séculos vindouros.
Vossa abertura de espírito bem revela a consciência do enorme potencial que se esconde em vossas arremetidas estéticas que, no meu entendimento, expressam a busca da verdade nas modulações da beleza que tanto vos atraem e mesmo justificam o itinerário artístico. Cuido que vós quereis abraçar o mundo, olhar olho no olho o desfilar dos fenômenos à vossa volta, resguardando aquela inocência da visão para mais bem lhe penetrar no mistério, não sem pari passu vos precatardes mercê de exigente espírito crítico. A espontaneidade que se casa com a reflexão bem define a sabedoria dos homens e lhes endereça o convite a que cheguemos ao limiar do instante privilegiado em que queremos o destino que nos cabe como se nós mesmos o houvéssemos escolhido. Em que vocação e destino se superpõem.
Vós secretais uma disponibilidade diuturna ao universo que nos circunda sem fixardes o olhar em nada, na esteira do filósofo Alan Watts, para quem “a atenção ilumina com clareza algum ponto, mas nada nos diz sobre onde realmente estamos”.
Hoje, a leitura é pessoal, silenciosa, reflexiva. Antes, sempre fora coletiva, com poucos livros à disposição de todos. Daí a presença mais profunda das ideias, das crenças, dos valores, da beleza nas mentes e nos corações dos poucos que eram depositários privilegiados do mundo encantado da cultura. Depois, a leitura passará gradativamente ao alcance de todos, ou de multidões. Avultou no horizonte a democratização da leitura. Contudo, à carência de textos sucedeu a sua proliferação nisto que George Steiner denomina o “dilúvio da escrita”.
Não devemos obliterar vosso engajamento político. Vós éreis estudante e participastes do Movimento de Educação de Base para alfabetizar adultos pelo Método Paulo Freire. Fostes dar aulas para operários num prédio em construção, em Copacabana. Combatestes o regime militar como jornalista, vivestes a dor do exílio, sempre forcejando pelos valores fundantes de vossa filosofia de vida. O jornalismo, na imprensa falada e escrita, vos moveu a atuar politicamente, com paixão, em prol de vossas convicções libertárias. Daí à perda da liberdade de ir e vir foi um passo. Pagastes o preço e forjastes a vossa têmpera e afirmastes a vossa vocação democrática voltada para a justiça social, valores constantes em vossa biografia.
Prêmios literários vos enriquecem a exuberante biografia. Jamais constituíram unicamente êxitos de vendas em si – é relevante sublinhar –, são, isto sim, permanentes sucessos de leitura. As listas dos mais lidos não podem emergir como critério valorativo por si mesmo. É um índice quantitativo, que vós atingis de maneira exponencial. O significativo é o despertar, pela leitura, do que há de humano em cada leitor, e os convites que vos endereçam para escrever, para proferir conferências, para transmitir vossas experiências literárias falam por si mesmos como evidências de que, não o sucesso perfunctório, mas a chama de vosso ardor artístico é que vem dimensionado vossa presença cultural, aqui e alhures.
Nada menos de sessenta prêmios literários demarcam a vossa passagem literária no País e no exterior, sem falar nas múltiplas menções honrosas, recomendações constantes de vossos textos, de vossas traduções, dentre as quais impende destacar Peter Pan e Uma história de Natal, havidos como as melhores traduções dos anos de 94 e 95. Foram 45 prêmios nacionais, dentre os quais se destacam os prêmios Machado de Assis desta Academia e da Biblioteca Nacional, o Octavio de Faria, da União Brasileira de Escritores, e três Jabutis. No exterior avulta, em primeiro plano, o prêmio equivalente ao Nobel de literatura infantil, o Hans Christian Andersen. Nada menos de setenta e sete livros vossos foram traduzidos em dezoito países, em onze línguas estrangeiras. Com isto, vós contribuís significativamente para a difusão da literatura brasileira pelo mundo.
Vós certamente observastes não haver me norteado a exposição por nenhum critério cronológico. Se o fiz, devo-o a vós, pelo menos em parte. Em História meio ao contrário iniciastes a narrativa com as palavras: “Casaram-se e foram felizes para sempre” e a terminastes de forma igualmente surpreendente: “era uma vez...”. Já se vê que, como vós, também me vali discretamente de uma pitada de Guimarães Rosa. Busquei palmilhar um roteiro de intencional e duvidosa cronologia para vos traçar o perfil e vos saudar na temporalidade deste instante em que, de pleno direito, ingressais na Casa dos Imortais.
Senhora Acadêmica Ana Maria Machado:
Aqui aportais com o valor inquestionável e plenamente reconhecido de vossa obra literária e de vossa densidade humana. Num mundo em compasso de mutação radical, sem ignorar ingenuamente os percalços da caminhada na terra dos homens, acreditais no ser humano e sorveis com alegria a vossa presença nesta época havida por alguns como apocalíptica. Isto porque vos habita o espírito a chama da fé e da esperança que, para vós, não se define, segundo pretende Giovanni Papini, como uma “inocente crueldade dos sãos, que tentam afastar a ideia da morte”. Não, aspirais e respirais o sopro da vida bafejada pelas benesses da cultura e da justiça social para todos. Enfim, pelo primado do espírito. Nisto consiste a vossa verdade. Ela é prenhe de confiança no porvir, pois bem sabeis que o pessimismo acaba sempre que encetamos a ação, nos engajamos pessoalmente na missão de viver humanamente e alongamos o nosso olhar confiante no futuro.
Senhora Acadêmica, a Casa de Machado de Assis, não apenas no futuro que procurais divisar com vosso lúcido olhar, mas hic et nunc (aqui e agora) já é inteiramente vossa!