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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Manuel Bandeira

Senhor Peregrino Júnior,

No vosso conto dos “Cherimbabos do Tuchaua”, o velho Florindo explica o segredo da raiz de uirapaçu:

O pica-pau da cabeça vermelha conhece uma raiz que abre todas as coisas. Quem possui ela, abre tudo que é de porta neste mundo. O diabo é descobrir adonde é que o uirapaçu tem o ninho. O pássaro é arisco e esconde o ninho bem dentro das matas, no bamburral, em riba de um pau seco. Quando o uirapaçu está criando, aproveita-se a hora em que ele sai atrás de comida pros filhos e tapa-se com barro o buraco de entrada do ninho. O pássaro volta, e achando o ninho tapado, voa pra longe e vai buscar a raiz encantada. A gente então acende uma fogueira embaixo do pau e espera que ele volte. Ele trás a raiz no bico e vem doido pra salvar os filhos. Assim que ele chega perto do ninho, a gente atiça o fogo e faz uma labareda grande. O uirapaçu se espanta e deixa cair a raiz no chão. Quem ajunta ela, está com a vida garantida.

Assim, não há porta fechada para quem tem raiz de uirapaçu. Ora, as portas desta Academia permaneceram durante quase dois anos ciosamente fechadas aos que pretendiam ocupar a Cadeira 18. As eleições se sucediam sem que nenhum candidato alcançasse a necessária maioria absoluta. Parecia coisa feita, alguma pajelança que o bom caboclo de Araruna houvesse praticado para retardar a transmissão de sua Poltrona. Confesso-vos que, ao vê-las abrirem-se tão facilmente para vós, pensei comigo: aqui andou raiz de uirapaçu...

Não que subestimasse os vossos méritos, que são consideráveis. Mas – ai de nossas humanas fraquezas! Sabemos todos que os méritos nunca bastaram para dar entrada nem nesta nem nas demais academias do mundo. Títulos excepcionais apresentavam alguns dos muitos candidatos que se inscreveram, em pleitos anteriores, à sucessão de Pereira da Silva: um grande poeta como Jorge de Lima, um grande filólogo como Sousa da Silveira, ambos aliás distinguidos com a maior láurea desta Casa – o grande prêmio Machado de Assis.

Tão-pouco subestimava a irresistível magia de vossa cordialidade. Ribeiro Couto inventou de uma feita a teoria do “homem cordial”. Segundo o nosso amigo, a cordialidade seria a contribuição brasileira à obra da civilização. Essa intuição de poeta mereceu considerada num grave ensaio de pesquisa sociológica de Sérgio Buarque de Holanda. Comentando-a, escreveu o autor de Raízes do Brasil: “Seria engano supor que, no caso brasileiro, essas virtudes” (a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade) “possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emocional extremamente rico e transbordante.”

A cordialidade, assim entendida, foi sempre um dos vossos apanágios. A tal ponto, que desde logo associei a vossa pessoa à teoria de Ribeiro Couto, e quem sabe se não fostes o principal inspirador dela? Sois, por excelência, o “homem cordial”.

A verdade é que, com ou sem a raiz de uirapaçu, possuís o segredo de abrir todas as portas – a dos corações, a das academias, a das universidades. E certamente não foi por sortilégio da raiz amazônica, mas em virtude de provas eruditas e brilhantes que chegastes às cátedras de docente de Clínica Médica na Faculdade Nacional de Medicina e na Faculdade Fluminense de Medicina. Quando, em 1940, fostes nomeado catedrático de Biometria da Universidade do Brasil, recebestes a homenagem de numerosos amigos e admiradores, e a palavra do mestre da famosa 20.a Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, o eminente professor Austregésilo, consagrou o vosso renome científico.

– O espírito de Peregrino Junior – disse o nosso querido confrade – fez-se no hospital, legítimo “rato” da Santa Casa, pontual e vivíssimo, sequioso de trabalho, discutidor e sorridente, às vezes ironista gracioso. Exame de enfermos, observações, novidades científicas, fatos e doutrinas andavam sempre espocando daquela cabeça privilegiada de nordestino. O homem de ciência preferiu para as suas cogitações o novo trinômio proposto à sagacidade dos espíritos investigadores – vitaminas, hormônios e sistema holo-simpático. Acerca das vitaminas, deu-nos um volume que logo se esgotou nas livrarias, tal a clareza e a precisão com que foi escrito; além disso, no Hospital, no nosso serviço, com Borges Fortes, cuidou das questões das carências, de Betavitaminose e chegou às mesmas conclusões defendidas pela nossa família da antiga 20.a. Na Policlínica do Rio de Janeiro criou o Serviço de Endrocrinologia, o primeiro que se sistematizou entre nós e que, apesar das faltas existentes em nossos centros científicos, marcha com a ânsia de aperfeiçoamento, que é a fórmula mais encantadora do espírito.

Enriquecestes a literatura médica com uma longa série de monografias que não são simples compilações livrescas, mas o resultado de pesquisas pessoais e de experiências de clínica. A esse aspecto melhor fora que fôsseis aqui recebido por um de vossos irmãos de ciência. Que poderia um poeta lírico dizer das “hipuropatias póticas”, da “meralgia parestésica”, do “flutter e fibrilações parciais”? Houve tempo em que me interessei pela biotipologia e andei lendo os vossos trabalhos relativos ao assunto. Devo dizer que me senti perdido entre as classificações de Walter Mills, de Kretschmer, de Viola, de Pende, de Estappé. Dissestes vós mesmo que a biotipologia nos parece ainda muito confusa, porque a sua terminologia se compõe de palavras numerosas, nem sempre exatas e precisas, muitas vezes controversas e até certo ponto incongruentes. Em face de tantas incertezas, acabei preferindo o sistema de Kretschmer pelo fascínio poético de suas denominações, sobretudo por causa da palavra “leptossômico”, que resolvi desde então incorporar ao meu vocabulário poético. Essa palavra “leptossômico” foi para mim o gérmen de um poema que até hoje não consegui formular. E tenho grande receio que à heroína dessa minha “Balada da mulher leptossômica” não aconteça a mesma coisa que ocorreu convosco, que de leptossômico passastes a pícnico, evolvendo da elegância longitípica para a braquitipia confortável, de que é símbolo essa Poltrona azul em que estais sentado.

Afinal abandonei o sistema de Kretschmer para adotar outro mais novo, que não era de homens de ciência, mas de poetas – Jaime Ovalle e Augusto Frederico Schmidt. Conheceis, sem dúvida, a estranha classificação que distribui os homens, os bichos, os vegetais e até as coisas inanimadas em cinco categorias, cada qual com o seu tipo-padrão, o seu anjo: os parás, os mozarlescos, os kernianos, os onésimos e os dantas. Os parás são os indivíduos extrovertidos, ágeis, dinâmicos, brilhantes, que onde chegam, vencem. Entre nós a maioria vem do Norte ou do Rio Grande do Sul. Senão, olhai: quase toda a imprensa carioca está nas mãos de nortistas, e há dezesseis anos que os cordéis da política brasileira são manejados pelos gaúchos. Os mozarlescos... O nome não deriva de Mozart e sim do anjo da categoria, nem posso declará-lo aqui, porque sobre ela pesa injustamente uma vaga atmosfera de ridículo. Os mozarlescos são sentimentais, acreditam no esperanto, choram nos cinemas. Os kernianos definem-se facilmente: são os impulsivos. O onésimo é o antípoda do mozarlesco: duvida sempre, sorri quando os outros se entusiasmam, desaponta. Os dantas, mais difíceis de caracterizar, são raros: não se lhes dá do sucesso material, vivem em verdade e pureza, num equilíbrio perfeito da inteligência e da sensibilidade. Dantas cem por cento foi o Cristo; Pedro I, kerniano; Pedro II, mozarlesco; Machado de Assis, onésimo. Parás somos todos um pouco. Pará sois também, meu caro Peregrino Júnior, permiti que vo-lo diga. Vejamos como vos retratou mestre Austregésilo: “Talento, sorriso, amabilidade, graça literária, pendor científico, solicitude amistosa, dinamismo, ânsia de subir com esforço e dignidade, tais são os predicados precípuos da personalidade de Peregrino Júnior.” Pará é pescoço forte. Pescoço forte? Isto é outra história. O mais simples dos sistemas biotipológicos, obra do vosso colega Pedro Nava. Os homens podem dividir-se em duas classes – os pescoços fortes e os pescoços fracos. Já examinastes, numa viagem de ônibus, o pescoço dos passageiros que vão à vossa frente? Ou ele é fino, pálido, de tendões salientes e cabelos ralos; ou robusto, sanguíneo ou mate, bem plantado e piloso. Transportai a observação para o domínio moral, e tereis ali, como no domínio físico, o pescoço forte e o pescoço fraco.

Assim é que, desde a adolescência, vos revelastes pescoço forte, abandonando o ambiente familiar de vossa província natal, tão enternecidamente evocada em vosso discurso, para ganhar as esporas de cavaleiro do exército do Pará na dura terra amazônica.

Já dissestes, como Raul Bopp: “A maior volta do mundo que eu dei foi na Amazônia.” Ambos vós ficastes marcados para sempre pela visão formidável daquele mundo paludial e como que ainda em gestação. O poeta cantou, no grande poema-delírio da Cobra Norato, as assombrações daquelas terras do Sem-Fim:

Aqui é a floresta subterrânea de hálito podre parindo cobras
Rios magros obrigados a trabalhar
As raízes inflamadas estão mastigando lodo
Batem martelos ao fundo
Soldando serrando serrando
Estão fabricando terra...
Uê! Aqui estão mesmo fabricando terra!

A vossa atitude foi diferente. Sois mais um observador, um analista do que um poeta. Viajastes na Amazônia recolhendo em cadernos vasto material paisagístico e humano que mais tarde iríeis tramar na urdidura dos vossos contos. Não sei se naquele tempo – éreis ainda adolescente – já pensáveis na Medicina. Como quer que fosse, a Amazônia foi para vós um caso clinico. Não se sente em vossas descrições o homem deslumbrado, senão o homem atento e lúcido. A miúdo vos servis de imagens-diagnósticos: “Ali bem perto daqueles seringais hidrópicos e abandonados, onde cochilam de papo no chão, sem ter o que fazer, dezenas de desgraçados, é o velório triste, que os ‘do sítio’ convencionaram chamar – ‘a cidade’. Meia dúzia de casas miseráveis: uma rua. No fim da rua, num largo iluminado de sol, a capela. E eis tudo. O resto são becos de palhoças, diluindo-se na anasarca dos pauis de tijuco”. Inferno Verde? Qual o quê! protestastes.

Literatura... Inferno de terra podre, de águas envenenadas, de espectros miseráveis e tristes. No ventre encharcado daquela terra empapada d’água, onde o pêlo hirsuto da floresta é povoado de bichos feios, os igarapés lentos e turvos deslizam como negras jibóias de morno lombo oleoso. O rebotalho humano que ali agoniza é a borra dos seringais abandonados, o resíduo imprestável da prosperidade que morreu com a borracha.

E fizestes, no conto do “Paroara”, a impressionante diagnose física e social do seringueiro:

Seringueiro é assim mesmo. Vive e morre dentro da mata – e não conquista nem possui a terra. A terra aniquila-o, inexorável. Porém ele não a ama nem a odeia. É, diante dela, um indiferente e um vencido. A Natureza não o fascina, mas também não o assombra: esmaga-o. Exilado e intruso naquele mundo, guarda consigo um desejo permanente de fuga. Enquanto não pode fugir com os próprios pés, evade-se com o pensamento. As evasões da sua imaginação têm disfarces líricos: saudades do sertão, recordações sentimentais, desafios à viola, histórias... No entanto, fatalista incurável, ali vive e ali morre, entre as paredes esburacadas da barraca solitária, sem ter sequer a coragem de capinar o matagal da vereda. – Pra quê? A terra não é da gente... Atonia total dos músculos e do espírito. Sendo o protagonista épico de uma formidável tragédia, não sabe avaliar a grandeza heróica do papel que inconscientemente desempenha... Estranho ao drama cósmico da terra que habita, permanece também estranho ao drama humano da sua própria alma. E dessa pungente inconsciência vai nascendo a tragédia brutal da conquista daquele mundo apocalíptico da Amazônia... O triunfador sucumbe, apagado e triste, com um travo amargo de derrota nos lábios...

Eis, aí, num escorço magistral, o quadro terrível pintado pelo colombiano José Eustasio Rivera nas páginas sombrias do seu romance: o homem prisioneiro da selva, devorado por ela; a selva sádica e alucinatória, onde, como diz o autor de La Vorágine, “os sentidos humanos equivocam as suas faculdades: o olho sente, a espádua vê, o nariz explora, as pernas calculam e o sangue clama: ‘Fujamos, fujamos!’”

Mas Rivera, temperamento hiperestésico, só tinha olhos para a tragédia, ao passo que os tendes também, fora da selva, nas cidades e nos velórios, para a comédia e para a farsa. Mesmo em vossos contos de assunto trágico, vemos as personagens como que refratárias à tragédia. Júlio Assunção labuta durante anos no seringal, sempre com o pensamento de enricar só para a Ritinha gostar mais dele. Quando pede o saldo no barracão, em vez de dinheiro lhe dão borracha. Júlio não protesta nem se lastima. É valente e nunca deu o seu direito a ninguém. Sabe, porém, bom realista, que naqueles cafundós do seringal não há direito para os pobres. “Bote pra cá o diabo dessa borracha, homem dos trezentos!” É tudo o que diz. Parte, perde a borracha numa corredeira, chega a Belém já ciente de que Ritinha o enganara. Mata-a a facadas e entrega-se à prisão, com a mesma alma leve com que partira para a selva. Só o perturba uma pequena dúvida: “O diacho é se seu Cosme levantou um falso à defunta!” Em “Feitiço”, como “Ritinha”, outro exemplar típico da vossa galeria de caboclas inzoneiras, as tragédias deslizam como a água nas folhas da taioba. Nessa história, a verdadeira tragédia está no exame de Anatomia Patológica com o professor Leitão da Cunha. Dais aí um retrato inesquecível do reprovador manso e polido, de “doce voz quinhentista”, com o seu vagamente macabro tratamento na segunda pessoa do plural, esse anacrônico “vós”, que é um segundo fardão imposto aos recipiendários pela praxe acadêmica:

Se em “Feitiço” e em outros dos vossos contos a tragédia se dissimula em comédia, na anedota da “Frente única” a realidade política brasileira assume proporções de farsa, tão verídica para todo o Brasil, que a vossa história da Tujucupaua amazônica foi coincidir com a história paulista das “Cinco panelas de ouro” do saudoso Antônio de Alcântara Machado. Por toda a parte encontraremos os coronéis Antunes e Anastácio, irreconciliáveis na politicalha municipal, mas solidários na subserviência ao governo estadual: o primeiro, prefeito, valendo-se do obituário do município para engrossar o seu eleitorado; o segundo, coletor federal, amigo do vigário, servindo-se, para o mesmo efeito, da lista do batistério. Na eleição de 1930 apostavam-se os dois a ver qual daria mais votos ao governo. Contais então o que aconteceu:

Na seção do coronel Antunes houve um fato muito desagradável: ao fazer-se a apuração, havia um voto para o Dr. Getúlio!

– Um voto para o Dr. Getúlio!
– Sim, coronel, um voto para o Dr. Getúlio!
– Que desaforo! Era só o que faltava! E o senhor, seu escrivão, não viu quem foi o bandido que deu esse voto?
– Não senhor, Coronel. Como todos os que votavam aqui eram amigos, não prestei atenção.
– Bandido! Apunhalar-me pelas costas numa eleição como esta! Mas eu hei de descobrir quem foi o Judas que me atraiçoou!

O delegado fez uma insinuação maliciosa:

– Isso deve ter sido arte do Manduca Sacristão... Eu vi outro dia ele conversando na bodega do Sernambi com o Chico Tuíra...
– Foi mesmo. Nem tinha pensado nisso. Cabra safado! Eu os mandei dar a ele um par de sapatos e uma roupa nova... Mas não faz mal, não: é pra eu não me fiar em espoleta de padre... Bandido, atraiçoar-me num pleito como este!
Após um momento angustiado de concentração gravíssima – Eureca! – o Coronel Antunes achou afinal uma solução para o impasse:

– Seu Escrivão, isso não tem importância, não; rasgue o diabo do voto! E para compensar, ponha na ata mais trinta votos na candidatura nacional do Dr. Júlio Prestes. É assim que eu respondo às misérias dos meus adversários!
– Mas isto não pode ficar assim, obtemperou, muito sério, o delegado, que tinha velhas contas a ajustar com o sacristão, por causa da filha do Zé Sernambi.
– É mesmo. Você tem razão, seu delegado. É preciso dar um ensino nesse tipo. Meta o sacristão na cadeia por minha conta –, dê-lhe uma pisa das boas! Ouviu? Não tenha pena dele, não!

Gostada de reler todo o conto, para o qual, como para “Ritinha” e para “Putirum de fantasmas” vai a minha predileção na vossa obra de contista. Quero, porém, testemunhar-vos de público a minha admiração pelo sóbrio patético que pusestes no relato da compra de uma mulher em “Putirum de fantasmas”:

Assim que teve um saldozinho, Severino cuidou de arranjar uma mulher.

O tapuio Remígio, que andava com umas febres brabas, era casado.

Severino procurou-o para propor negócio.

– Seu Remígio, você quer fazer um negócio?

O tapuio balançou com a cabeça – que sim.

– Você está por pouco... não é, seu Remígio?

O tapuio confirmou de novo com a cabeça.

– E sua mulher, sinhá Virgolina, vai ficar sozinha neste mundão de seringal, sem ter ninguém que puna por ela.

O tapuio arregalou os olhos, espantado mas sem revolta.

Severino falou mais claro:

– Você quer me vender sinhá Virgolina, seu Remígio?
– ?! (uns olhos compridos de dor furaram o silêncio.)
– Negócio é negócio. Eu pago a sua conta no barracão e ainda lhe dou por cima duas peles de borracha fina.

O tapuio não disse nada. Mas seus olhos sem esperança buscaram no quarto os olhos da mulher.

Severino, sem hesitar, atirou duas peles no meio da barraca, com estrondo, e completou com uma frieza cruel o seu pensamento sinistro:

– Mas porém eu levo logo sinhá Virgolina lá pra casa!

O tapuio, compreendendo o irremediável da situação, envolveu-o num olhar resignado de fatalismo, cheio de uma tristeza que não sabia e não podia protestar.

D. Virgolina concordou sem piedade:

– É mesmo. Eu vou logo. Remígio está morrendo aos tiquinhos...

Todas essas histórias, ou trágicas ou cômicas, recolhidas nos vossos livros PussangaMatupá História da Amazônia, não as escrevestes no Pará. Ali éreis apenas o estudante. E o jornalista que sustentava o estudante. A vossa vocação para o Jornalismo vinha da meninice. Quando ainda cursáveis em Natal o Ateneu Norte-Riograndense, fundastes dois jornais. Em Belém, repórter policial da Folha do Norte, editastes duas revistas ilustradas. O rapaz que em 1920 saltou no Rio era um jornalista feito e, vós mesmo o contastes numa entrevista em 39, “um jovem literato da cabeça aos pés, compenetradíssimo do meu papel, devorador dos simbolistas franceses, de Camilo (era preciso conhecer a língua!), de Eça de Queirós, e principalmente de Machado de Assis”.

Entrastes na imprensa carioca pela mão de um grande jornalista, esse Cândido Campos, veterano descobridor e formador de vocações jornalísticas. Na redação de A Notícia conhecestes Ribeiro Couto, a quem ficastes para sempre ligado por uma amizade verdadeiramente fraternal. Ele é que devia estar hoje aqui para celebrar a vossa vinda, para dizer dos vossos méritos, para evocar naquele estilo deslizante de que possui o segredo a quadra em que juntos iniciastes a arrancada que ao cabo vos trouxe até esta Casa. Permiti, meu caro Peregrino, a indiscrição de ler neste recinto um trecho da carta que em março me escreveu o nosso amigo a propósito de vossa eleição: dar-vos-ei assim por um momento a grata ilusão de sua presença.

Estou muito contente por ser você quem vai receber o Peregrino. Está claro que eu me pelaria por recebê-lo. Estimulado pelo tema, faria um panorama da nossa boêmia difícil, entre 1918 e 1920 e tal. A nossa sinuca de bico. Com muita literatura e muita ambição de casar com moça rica... que afinal preterimos pelas pobres, naturalmente. Até hoje estou gozando a eleição do Peregrino. Parece mentira! Que longa viagem – afinal felizmente acabada! Dizer-se que nós todos, ainda no outro dia, estávamos à cata do vale de vinte mil-réis no Rio Jornal...

A essas palavras posso acrescentar, agora sem indiscrição, as que ele pronunciou no almoço público de 1940:

Há vinte anos que admiro e estimo Peregrino Júnior. Começamos a vida como “rapazes de jornal”, neste mesmo Rio de Janeiro em que éramos provincianos, românticos e um pouco espantados. Ele andava sempre com livros debaixo do braço. Estudava uma coisa misteriosa. Depois vim a saber: era Medicina. Como podia conciliar as horas de estudo e de laboratório com as horas absorventes da redação? É que, desde mocinho, Peregrino Junior sempre surpreendeu os seus companheiros com a atividade prodigiosa de que é capaz. Tempos difíceis, aqueles nossos. Naquele ano de 1920, para nós, a vida era bem dura. Ainda assim, que bom! Que maravilhosa esperança! Tínhamos a certeza de que havíamos de acabar fazendo “alguma coisa”. Ninguém, do nosso grupo, fez mais e melhor do que ele. Do repórter saiu o escritor: aí estão os seus fortes livros, portadores das paisagens e dos tipos amazônicos. Do escritor saiu o médico: e sei de muitas casas onde a simples presença de Peregrino Júnior já é remédio. Do médico saiu o professor universitário, que hoje festejamos. Professor, de resto, ele sempre foi: professor de entusiasmo. Toda a sua vida é uma afirmação viril de otimismo e confiança. Tudo isso, sem perder um certo ar de candura, não sei quê de adolescente que subsiste nele e é consolo para os que envelhecem mais depressa.

Ribeiro Couto relembrou os vales do Rio Jornal. Foi no vespertino de João do Rio e Georgino Avelino que contraístes, em 1922, o vosso único vício de que nunca mais vos libertastes, talvez pour faire enrager les gens graves, o vício da crônica mundana. Não sejamos demasiado severos para essa arte fútil mas difícil de dar um sorriso para todas e a perfídia para algumas. Podeis autorizar-vos de um exemplo ilustre: Proust também começou pela crônica mundana. Les gens graves da primeira década do século tomavam então por um snob inofensivo o homem que anos depois iniciaria com Du Côté de chez Swann a mais profunda sondagem da quarta dimensão do tempo. Escrevendo bagatelas amáveis sobre os salões das princesas Matilde e Edmond de Polignac, das condessas d’Haussonville, Potocka e Guerne, de Mme. Madeleine Lemaire, ensaiava-se ele para a prova definitiva do salão de Mme. de Guermantes. Como fazíeis na “Vida fútil” do Rio Jornal, como fazem hoje o nosso Jacinto de Tormes ou Gilberto Trompowski, alinhava nomes enlaçados na guirlanda fácil dos adjetivos jornalísticos: “M. Anatole France, le duc et la duchesse de Brissac, la comtesse de Briey, M.M. Robert de Flers et Gaston de Caillavet, les brillants auteurs du triomphal Vergy et leurs femmes exquises...” Um sorriso para todos e para todas... De sopetão, no meio dos sorrisos, a fina perfídia:

Près du piano, un homme de letrres encore jeune et tort snob, cause familièrement avec le duc de Luynes. S’il était enchanté de causer avec le duc de Luynes, qui est um homme fin et charmant, rien ne serait plus naturel. Mais il parait surtout ravi qu’on le voie causer avec un duc. De sorte que je ne puis m’empêeher de dire à mon voisin: Des deux, c’est lui qui a l’air d’être Honoré”.

É claro que a crônica mundana do Rio de 1922 não podia ter esse brilho. Não havia ainda entre nós príncipes autênticos nem reis exilados em terras da América. Era o Rio do centenário da Independência, governado pelo presidente Epitácio Pessoa, o Rio dos “almofadinhas” e das “melindrosas”, o Rio que se ria com as farsas do Chico Bóia e achava ainda vertiginosas as janelas do Pálace Hotel. Gago Coutinho e Sacadura Cabral sobrevoavam pela primeira vez o Atlântico. Angela Vargas, em sua casa da Praia de Botafogo, reunia os poetas e as discípulas e os amigos, nas “horas de inverno”, onde Adelmar Tavares falava sobre “A alma feiticeira da trova”, onde Olegário Mariano era sempre reclamado para dizer “Água corrente” ou “As duas sombras”.

Vida fútil... Mas quem sabe se um Gilberto Freyre do futuro, que digo? se o próprio Gilberto Freyre de hoje não encontrará nas páginas do vosso livro o pormenor que o ajudará a interpretar sociologicamente a nossa terra e a nossa gente? Nada é fútil, ou tudo será fútil aos olhos de Deus e dos sociólogos.

Não vos poupei, meu caro confrade, no comentário do vosso vício. Não vos pouparei tão-pouco em falta mais grave. Dissestes, a certa altura das memórias que estais escrevendo: “Sem nunca ter perpetrado versos, eu sempre senti em mim a vocação da poesia.” Não é verdade que nunca tenhais perpetrado versos. Esquecestes que no conto “Caboré” destes sortida à vocação poética, descrevendo em versos onomatopaicos uma dança de negros nos mocambos do Trombetas. Vou dizer aqui esse poema, que me dará o prazer de vos incluir na minha antologia dos poetas bissextos, porque ele pode ser posto ao lado dos poemas negros de Raul Bopp e de Jorge de Lima:

O atabaque no batuque bate-boca
Qui-tim-bum-bum... quitimbum...
Os negros dançam, o corpo mole, batendo os pés no chão duro,
Qui-tim-bum-bum... qui-tim-bum...
Tronco cavado, couro esticado, bem retesado,
Qui-tim-bum...
O tocador, com as mãos abertas, marca o compasso,
Bum-bum-qui-tim-bum-bum...
No ritmo do carimbó, dançando a dança negra, os negros recordam as
[velhas senzalas tristes.
Ouvem o grito longínquo da África, o grito dos que ficaram lá longe
[chorando, e dos que partiram humilhados.
Qui-tim-bum... qui-tim-bum...
A melancolia sem revolta das levas mansas no porão negreiro...
E o grito fino do chicote do feitor zebrando de riscas o lombo enverni-
[zado de suor.
Qui-bum-bum... qui-tim-bum-bum...
Ouvem tudo... a fuga... o chuá das águas do Trombetas.., a voz de liber-
[tação dos quilombos de Óbidos,
[Qui-bum-bum... qui-tim-bum-bum...
E o carimbó cantando geme soturno na noite negra, no compasso grave
[do bate-boca do batuque...

Aos que vos conhecemos mais intimamente não poderiam causar estranheza esses versos. Porque sabemos como em vossa atividade espiritual se conjugam harmoniosamente as três forças da imprensa, da Literatura e da Medicina. Nem há trabalho que melhor e mais completamente vos represente do que o vosso estudo sobre a Doença e Constituição de Machado de Assis. Nesse livro, se o médico firma com segurança o seu diagnóstico, o homem de letras, o crítico, revela-se cabalmente na documentação literária sacada da obra do romancista. E o ensaio, que podemos considerar definitivo, resultou da ampliação de um simples artigo do jornalista que sempre fostes e continuais sendo. Particularmente incisivo e esclarecedor é o vosso capítulo sobre a ambivalência de pensamento e sentimento, não só na vida, como na obra de Machado de Assis. Augusto Meyer já havia notado que

esse homem era uma colônia de almas contraditórias, como toda personagem complexa: o niilista feroz foi um funcionário exemplar, o cético fundou a Academia de Letras, o cínico deliciava-se mentalmente na companhia da pérfida Capitu, porém amou a meiga Carolina.

Sentindo em si próprio tamanhas contradições, não queria o desenganado espectador da vida deixar-se lograr pelas falsas aparências dos móveis inconfessáveis. Estava sempre em guarda contra as boas ações ou contra o humorismo alheio. Assim lhe explico a reação de enfado no caso da aquarelinha de meu pai. Era uma vistazinha do posto semafórico do Morro do Castelo. Talvez por lhe lembrar os dias da infância, Machado de Assis agradou-se muito da paisagem pintada em papel almaço. Pediu-a, e no dia seguinte contou que a tinha mandado encaixilhar. Meu pai, extremamente envaidecido com esse seu único triunfo de aquarelista amador, saiu do Ministério rufando caixa. Dias depois o engenheiro Antonino Fialho se encontra com o romancista na Rua do Ouvidor e lhe fala do caso da aquarela. Machado de Assis, gaguejando com raiva, diz-lhe: “Já é a... a... a terceira pessoa que me vem falar nisso!” Ao que Antonino Fialho respondeu com aniquiladora polidez: “Sinto muito ter sido a terceira...” Devo acrescentar que nem por isso deixou Machado de Assis de aparecer assiduamente na sala de meu pai toda vez que o serviço oficial dava alguma folga. Ali gostava de conversar com o engenheiro Abel Ferreira de Matos, ao qual, no conto “Um incêndio”, se refere, encarecendo “o pico, a alma própria que este Abel põe a tudo o que exprime, seja uma idéia dele, seja, como no caso, uma história de outro”. Os dois engenheiros, quando se juntavam, eram como duas crianças: falavam em língua de preto velho ou com sotaque de português ou de italiano, faziam toda a sorte de jogos verbais improvisados, praticavam uma espécie de surrealismo avant la lettre, nem se vexavam da presença do romancista a quem tanto admiravam e respeitavam. Quando apareceu o romance Dom Casmurro, Abel de Matos, leitor sempre atento, descobriu no livro um errozinho de cálculo elementar nas contas de uma personagem. Escreveu logo a Machado de Assis uma carta, em que estranhava o cochilo, senão do romancista, ao menos “do Chefe da Contabilidade do Ministério”. Muito se tem falado do caráter retraído e desconfiado do Mestre. Sabe-se que detestava os indivíduos indiscretos e derramados. Gostava, porém, de conversar com as mocinhas e os rapazolas. A esse respeito posso dar o meu depoimento. Conservo entre as minhas melhores lembranças certa viagem de bonde que fiz do Largo do Machado até a minha casa em Laranjeiras. Tinha eu os meus quinze anos. Aconteceu sentar-me no carro ao lado de Machado de Assis, que vinha lendo A Notícia. Reconhecendo-me, apertou-me a mão, dobrou a folha e, para minha delícia, entrou a conversar. Contou-me um passeio de lancha que fizera na baía com um grupo de poetas, entre os quais estava Bilac. Eugênio Marques de Holanda recitara uma estrofe do segundo canto de Os Lusíadas. Quis o Mestre repetir os versos, não se lembrava. Eu, que sabia o meu Camões de cor, balbuciei timidamente: “Com um delgado cendal as partes cobre...” O Mestre interrompeu-me: “A anterior... a anterior...” Mas a memória traiu-me, e eu me recordo bem que entrei em casa mortificado dessa traição.

Conto esse caso para apoiar as vossas palavras, quando dissestes que “Machado de Assis, ao contrário do que se tem pensado e dito, não era um coração seco e estéril: era um amigo afetuoso, cuja alma escondia as mais generosas reservas de ternura e cordialidade”. Conto-o também para contradizer-vos, e explico por quê. Falastes em vosso livro no “interesse muito relativo que ele (Machado de Assis) tinha pelo mundo exterior e pela Natureza”, e mais adiante escrevestes: “Sem amar propriamente a Natureza...” Será admissível esse desinteresse de Machado de Assis pela Natureza? É verdade que nos seus romances não há paisagens. Mas elas abundam na sua obra poética. Não amaria a Natureza quem escolheu para residência definitiva a encosta do Cosme Velho, um dos trechos mais amoráveis da paisagem carioca? Quando o Mestre me falou do passeio na baía, fez uma descrição do crepúsculo, onde era evidente o sentimento da Natureza, a capacidade de íntima comunhão com ela. Tudo o que se pode dizer é que, embora sentindo e amando o mundo exterior, interessava-se mais pelo mundo interior do homem. A sua atitude está claríssima no soneto “Mundo interior”:

Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
Do sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza – a natureza externa –,
Tem o olhar que namora e o gesto que intimida,
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E, contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo,
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia – e dorme.

Nesse poema, que é de Ocidentais, me parece que está inteiro o pessimista que no mundo exterior da Natureza e no mundo interior do homem via sempre “o eterno cataclismo” e, pior que isso, a famosa “contração cadavérica”, a destruição que se afirma sob as aparências de perpétua recriação, enfim, a criatura “antiga e formidável”.

A essas páginas de crítica, tão fina e tão lúcida, que escrevestes acerca do romancista de Memórias Póstumas de Brás Cubas, juntais agora as que acabais de pronunciar sobre o poeta de Solitudes. Nelas a figura, a vida e a obra do vosso antecessor ressurgem palpitantes de vida no ambiente da escola em que ele iniciou a sua carreira literária. Perguntastes, em dúvida: “Terá sido Pereira da Silva realmente um simbolista?” E concluístes, com Andrade Muricy e Tasso da Silveira, que o poeta paraibano pertenceria mais à estirpe dos últimos românticos. De fato, ressalvada a atitude espiritualista, a repugnância ao “triunfo imortal da carne e da beleza”, o simbolismo em Pereira da Silva se revelou apenas no primeiro livro e por certos cacoetes da escola. Deles zombou João Ribeiro dizendo que “a escola novíssima de poetas pôs a saco o pecúlio sagrado das igrejas, roubando-lhes os cimélios de ouro e as ladainhas sonoras”. Esses poetas que não sabiam latim gostavam de gastar latim. Vae Soli! chamou Pereira da Silva ao seu livro de estréia, onde citava em latim as Lamentações de Jeremias. E assinava-se Da-Silva, com D maiúsculo e hífen unindo a partícula ao apelido. Esses poetas pretendiam encher de misterioso sentido certos substantivos, grafando-os com maiúscula inicial. “Tristeza” não seria bastante triste se não levasse maiúscula, e personalizavam-na em Dona Tristeza. Certas letras punham-nos em estado de transe: o “y”, o digrama “th” (Castro Meneses intitulou o seu livro Mythos, porque essa privilegiada palavra ostentava ainda o duplo timbre da linhagem grega). As datas não podiam ser em algarismos árabes, banalizados pelo emprego quotidiano, senão no aristocrático sistema romano. Com todas essas exterioridades, que irritavam grandemente os velhos críticos, disfarçava Pereira da Silva o seu romantismo inato para se exprimir na tonalidade da escola. Ele que era tão simples e modesto, filho de um fabricante, não de alaúdes, mas de violas sertanejas, semeou os seus primeiros poemas de complicados vocábulos como “aureolais”, “resplandorada”, “sugestional”, sobrecarregou-os dos cimélios tomados à Igreja, trivializou a sua funda e rara melancolia de solitário com os lugares-comuns da grei, chamando-a Santa Tristeza, Dona Palidez, Sóror Mágoa. Com a idade e, à proporção que o poeta tomava consciência do seu destino, esses alambicamentos foram sendo postos de lado e ele pôde chegar à pureza de poemas como o soneto Nihil, onde se exprime com tanta simplicidade aquilo a que chamastes a sua mística da tristeza:

Dia parado entre nevoento e enxuto.
A natureza como semimorta.
Quanto aos vencidos, Musa, desconforta.
Esta infinita sugestão de luto!

Quanto a mim, de minuto por minuto,
Ouço alguém... Alguém bate à minha porta...
Quem é? Quem sabe? Uma saudade morta,
Coisas tão d’alma que eu somente escuto.

Nesta indecisa solidão sombria,
Sem cor, sem som, meio entre a noite e o dia,
Como que a Morte a tudo, a tudo assiste...

Como que pela Terra desolada
A consciência universal do Nada,
Deixa um silêncio cada vez mais triste...

De resto, foi na forma soneto que o poeta deu o melhor de si, como se o seu temperamento romântico necessitasse dessa disciplina de contenções e limitações para se despojar das superfluidades. Outra forma sua predileta, e onde creio é exemplo melhor senão único em nossa poesia, foi a dos decassílabos emparelhados, como os da “Loa da vagabunda”, álveo natural dessa veia poética, definível por uma imagem desse mesmo poema:

                          ... uma levada
Que ia correr tumultuosamente
Para dar água pura a toda a gente...

Sr. Peregrino Júnior: sois agora dos nossos. Não creiais porém seja esta “a glória que fica”. A glória que fica nas Academias é a que se traz de fora delas. Basta ler a lista dos nomes daqueles por quem Victor Hugo foi preterido na Academia Francesa em várias eleições, para nos convencermos da falácia com que aqui nos prometem a imortalidade. A glória que consola é a do trabalho. Sois um grande trabalhador. E eu quero terminar estas minhas palavras de admiração e afeto numa festa em que tanto falastes do Simbolismo, repetindo-vos o incitamento de António Nobre:

Vamos semear o pão, podar as uvas,
Pegai na enxada, descalçai as luvas...

No caso, despi o uniforme:

Tendes bom corpo, irmão! Vamos cavar!