Raros escritores souberam traduzir a fundo a condição polifônica da cultura brasileira como João Ubaldo. Não à margem de uma ideia, mas no corpo sinuoso da palavra, em sua ferida, aroma e textura, ao mesmo tempo física e erudita. Não se limitou apenas aos corifeus, mas destacou as formas corais, para individualizá-las, na trama de uma totalidade que ilumina a beleza das partes sociais e subjetivas. Sem dúvida, a presença de Jorge Amado. Mas não apenas, porque a síntese de Ubaldo ia a Gilberto Freyre, Euclides, Rosa e Machado, cada qual absorvido pelo material de sua oficina. E o padre Vieira. E Bernardes. Porque João Ubaldo dispunha de um apetite semântico pantagruélico, no ideário euclidiano, da palavra exata, que o sensualismo, de todas as tessituras, mais difusas e delicadas do que em Euclides. Não a palavra estática e sem vida, alçada ao voo por força e graça de adjetivos vazios nas vitrines de um museu literário. A palavra como ritmo e vigor das coisas vivas, feridas pela história.
Se João Ubaldo é um dos grandes músicos da prosa portuguesa, Viva o povo brasileiro é um concerto grosso de Bach, de longa duração e fraseado, cujas harmonias têm sede de espaço para respirar, para crescer, sem inflação, no entanto, na estrita observância do fraseado e das melodias sobrepostas. Palavra para favorecer a circulação das culturas às margens do atlântico, deslocadas para este mundo, com saudades do futuro e laivos de sebastianismo.
Eis os motivos essenciais do concerto barroco de João Ubaldo, que ama as palavras na síntese de sonho e sangue de que são portadoras. Dos sermões de Vieira aos versos corânicos, da língua de Angola à língua geral, com frei Vicente de Salvador e Antonil, do inferno do açúcar e os outros reinos, que João Ubaldo realiza no encontro de tempos mistos, como nas multidões dos filmes de Griffith. Para fixar, ao mesmo tempo, um rosto, um sujeito plural e coletivo.
Ubaldo conhecia bem o debate sobre os universais no fim da Idade Média. Conhecia Guilherme de Ockam e Tomás de Aquino, como declarou mais de uma vez. Se a arquitetura de Viva o povo brasileiro, mais complexa que a construção do colégio dos Jesuítas e a catedral de Cuzco, em José Maria Arguedas, repousa de algum modo sobre aquela antiga disputa, dissolve-se de imediato num mundo abundante e curvilíneo, povoado de anjos e demônios na parcela de utopias dos tempos coloniais.
Tive a grata satisfação de manifestar meu entusiasmo a João Ubaldo de forma pública, no Prêmio Camões, e particular. Não perdi tempo. Não deixei de interagir como leitor.
Guardo apenas uma dúvida. Se Viva o povo brasileiro estava ou não guardado em alguma prateleira da biblioteca de Policarpo Quaresma. Gosto de pensar que Lima Barreto leu João Ubaldo. O mistério do todo na beleza cintilante das partes, sem antes ou depois. Não será essa a única e possível imortalidade?