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A elite branca

 

Como já deve ter previsto o pugilo de bravos que me lê com assiduidade, de novo as Parcas me fizeram a grande maldade de marcar para anteontem (tempo de vocês, este domingo) o jogo com a Colômbia, mais uma vez impossibilitando que eu leve o resultado em conta. Eu pelo menos podia ter conversado com a Sociedade Interamericana de Imprensa, a fim de ver se ela pressionava a Fifa para corrigir a grave injustiça e mudava a tabela, mas é tarde. E, se eu houvesse feito a besteira de escrever, como cheguei a pensar, que o jogo tinha sido moleza, como sempre acontecia com o freguês Chile? Teria quebrado a cara, como quase quebro no boteco, quando pulei na hora em que, já no fim da prorrogação, o Chile botou aquela bola na trave e dei com a testa na tabuleta que anunciava o chope em promoção. Esqueçamos, esqueçamos.

O jeito é voltar-me para os últimos acontecimentos extra-Copa. Quase todos eles se relacionam com o edificante espetáculo democrático deste ano de eleições. Lá e cá, por todo o país, como que se ouvem gritinhos pressurosos pululando nos ares — cadê o meu, cadê o meu, tenho que me fazer, tenho que me fazer! — enquanto estadistas e líderes se digladiam no embate inflamado de ideias, planos e projetos de ascensão pessoal e grupal e os partidos se empenham por caracterizar nitidamente suas posições, embora, assistindo-se a seus anúncios na televisão, seja um pouco difícil distinguir identidades e programas próprios. Todos eles pregam a justiça social, o combate à exclusão, os investimentos em saúde, educação, segurança, coisas com as quais, de tão vagas, qualquer um concorda. Nenhum deles mostra como e o que fará para avançar nesses campos. Isto fica para depois e, pelo visto, sempre ficará.

Cada vez mais abusadas, algumas palavras perderam o sentido. Quase ninguém é capaz de fazer uma distinção teórica, ou abstrata, entre esquerda e direita políticas e, por exemplo, o ex-presidente Lula as emprega para lá e para cá, conforme a necessidade do momento. Ou seja, direita, assim como esquerda, é o que convém. Nega que seja de esquerda e em seguida vocifera contra manobras da direita, como se fosse um porta-voz da esquerda continental. Aliás, é interessante essa conversa de direita e esquerda, considerando-se que Lula é ex-aluno (isto mesmo) da Universidade Johns Hopkins (isto mesmo, universidade), venerável, prestigiosa e cara instituição de ensino americana, onde estudou (isto mesmo) no começo da década de setenta e quem sabe recebeu (não tenho certeza, mas creio que sim) um diplomazinho, ou certificado, que teria precedido o diploma de presidente, o qual bem depois lhe foi conferido, ocasião em que ele proclamou que o primeiro diploma que o operário sem estudo e filho de mãe analfabeta recebia na vida era o de presidente da República. Eu, se tivesse tido até mesmo umas duas parcas semaninhas de seminário na Johns Hopkins, me gabaria de vez em quando, mas esta vida é assim mesmo, tudo é muito relativo. Talvez ele queira esquecer seu período de estudante em Baltimore. Lá de fato faz muito frio, embora eu tenha lido em algum lugar da internet que ele, como sempre simpático, descontraído e boa-praça, fez sucesso e deixou muitos amigos e admiradores. Pode ser que não queira encher a bola da AFL-CIO, poderosa organização sindical americana sob cujos auspícios estudou na Johns Hopkins e, antes, em São Paulo mesmo. O homem não é só doutor honoris causa, não, tem outras láureas acadêmicas, conquistadas nos bancos escolares, de que ele, na sua proverbial modéstia, não fala.

Outra palavra que já merece uma pesquisa semântica é “elite”. Lula também faz embaixadinhas com ela a torto e a direito e é preciso estar atento. Assim mesmo, é difícil entendê-la, a começar pela circunstância de que, desde a época em que foi chamado como promissor talento para a temporada universitária patrocinada pela AFL-CIO, formadora de quadros sindicais presente, respeitada e temida em todo o mundo, ele é elite. Foi elite dos sindicalistas, é elite do partido que está no poder, exerceu o posto mais alto da elite governante, num país onde o presidente da República é um monarca tratado com subserviência e vassalagem, viaja esplendidamente para palestras e lobbying, come do bom, bebe do melhor, é amigo pessoal e companheiro de lazer de ricos e poderosos, se trata nos mais respeitados hospitais com os mais renomados médicos, não entra em filas, não pega transporte público, não paga aluguel de casa nem prestação de carro, não se aporrinha com providências do cotidiano, não tem preocupação com o futuro, ganha mais do que todos os professores do primeiro grau da rede pública do Maranhão juntos, manda para lá, desmanda para lá e, ainda por cima, é cultuado por grande parte do povo. Então, ele não é elite? De que mais se precisa para ser elite?

Uma aparente novidade não altera a situação dele e até a faz mais difícil de compreender. Trata-se da expressão “elite branca”. Se bem me lembro — e até conferi nuns clipes que guardo no computador — Lula tinha o cabelo bem crespo, antes de sua completa ascensão política. Como sua pele não é alva, poderia talvez, por causa do cabelo, ter sido considerado pardo ou, como se dizia antigamente, mulato. Ou até negro, pelos critérios americanos que agradam a tantos. Mas hoje, como o nome de Conceição, o cabelo dele mudou. Alguém que nunca o tivesse visto antes, nem em fotografia, tê-lo-ia na conta de branco de nascença. Branco latino-americano, hispânico para os americanos, mas, em última análise, branco. Por conseguinte, ele não apenas pertence a várias elites, como pertence à elite branca, ele ficou branco. De resto, elite branca mesmo, no Brasil, só as famílias mais prósperas das comunidades de origem europeia, no Sul. Vai ver que elas acham que die Eschculambazionen foi longe demais e vão chamar dona Angela Merkel para derrubar o PT.

O Globo, 06/07/2014