Não se pode negar que o empate contra o México repercutiu mal em Itaparica, com as habituais exceções. Por exemplo, Gonçalinho Bode, que ninguém leva nem a pescaria na contracosta, porque, quando ele está presente, só se fisga baiacu, achou o resultado bom, conquanto não tenha assistido ao jogo, por não ter tevê e por ser sempre convidado a retirar-se do recinto assim que o time adversário pega na bola. Há muitos anos, dizem que Ary de Maninha iniciou um movimento para naturalizá-lo argentino, mas alguém dedurou o esquema e a Argentina decretou emergência nacional e fechou as fronteiras, portos e aeroportos. Merece também menção o caso singular de Tonho Profeta, assim alcunhado porque, aconteça o que acontecer, ele sempre aparece no Bar de Espanha pouco depois e, quando alguém menciona o ocorrido, estica o indicador e fala “eu não disse?” Pois é, ele também disse que o jogo ia empatar e ficou contente, embora se deva reconhecer que qualquer outro resultado teria efeito igual, Tonho nunca falhou. E sei que isto é uma digressão talvez condenável, mas não resisto a lembrar a ocasião em que pediram a Tonho para prever o resultado de um Ba-Vi.
— Eu nunca previ nada — disse Tonho. — Vocês querem é me pegar como mentiroso.
— E não é, não?
— Eu não disse? — retrucou Tonho brilhantemente.
No mais, nada de excepcional ou inusitado se observou, com a notável exceção de Zecamunista, que deu dois murros na mesa, puxou seu boné do Exército Vermelho quase até o nariz, levantou-se e se preparou para sair, pouco antes do fim do jogo contra o México.
— Já vai, Zeca? O jogo não acabou, assim você quebra a corrente.
— Que corrente? Não me envolva em suas práticas supersticiosas e primitivas, não faço parte de nenhuma corrente.
— Tudo bem, então fique aí de qualquer jeito, pela companhia.
— Muito obrigado, mas eu me recuso a ver esses Pancho Villas reduzindo a Seleção a guacamole, não vim aqui para ser humilhado! Manda a vergonha que eu me recolha a meus aposentos particulares e não apareça mais em público até o fim desta Copa! Onde já se viu? Onde estamos? Se a Copa fosse de bolero, tudo bem, futebol não! Não me esperem mais, tudo tem limites!
Falou da porta e, em seguida, esmurrando o ar, retirou-se, deixando algumas indagações entre os presentes. Com sua grande cultura, fizera alusões que talvez esclarecessem aspectos da partida que houvessem escapado a olhos menos escolados, mas não se chegou a um acordo sobre o exato significado de alguns dos termos que ele empregou. Uns supuseram que Pancho Villa era o nome de um jogador mexicano, mas neste caso havia um raro equívoco da parte de Zeca, porque Manolo checou no jornal e não tinha nenhum Pancho Villa no time mexicano. Outros sustentaram que a palavra era “panchovia”, que queria dizer perna de pau em mexicanês. Quanto a guacamole, o consenso foi de que em boa coisa não deve consistir e muitos já tapam o nariz preventivamente, quando ouvem a palavra.
Felizmente, a ameaça de Zeca não se concretizou e, dois dias depois do rompante, ele estava de volta ao Bar de Espanha, onde quase foi aplaudido na chegada. Agora com tranquilidade, certamente poderia explicar a questão dos panchovias e do (ou da) guacamole, bem como outras, não acessíveis à maioria. Seu velho semblante subversivo, contudo, permaneceu impenetrável durante um certo tempo, enquanto ele fincava os cotovelos no balcão, pedia uma cerveja e bebia os primeiros goles, sem dizer uma palavra. Já o suspense se tornava insuportável e as perguntas já iam pulular, quando, com os olhos mirando um ponto vago à distância, ele resolveu falar.
Tinha, inicialmente, de fazer uma autocrítica. No jogo contra o México, realizara um diagnóstico apressado da situação e reagira emocionalmente ao que acontecera em campo. Embora isto não se justificasse, tinha uma explicação. Ele era do tempo em que o México só tinha um goleiro, o bom e velho Carbajal, que jogou umas dezoito Copas e só saiu do time porque a Fifa proibiu o uso de bifocais na pequena área. Todo menino aprendia na escola que o México era freguês e que os mexicanos torciam nas Copas pelo Brasil. Agora, vissem todos, o México apertava o Brasil e seu goleiro, que não chega nem perto do velho Carbajal, é lançado candidato a melhor da Copa.
— Ora, viu-se muito bem que esse goleiro não pegou nada — disse ele. — Ele ficava embaixo do travessão, a bola batia nele e ele tomava um susto medonho. Defesa mesmo, eu só vi uma. E aí vai se vendo como esta Copa é anormal. Temos o goleiro mexicano. Temos a Espanha, toda campeã do mundo e toda porreta, tomando sete gols em dois jogos e sendo despachada de rabo entre as pernas. Temos os holandeses, também muito retados, que quase tomam um cacete da Austrália, onde só existem quatro bolas de futebol, todas da seleção deles. Temos a Bélgica, também muito retada, que quase quebra a cara no primeiro jogo. Tem um baiano de Itabuna e um carioca na Croácia, um sergipano de Lagarto na Espanha e um paulista na Itália. E por aí vai, ninguém entende nada. Cheguei à conclusão de que ganhar a Copa só depende de nós. É o que dizem os fatos e um bom materialista, como eu, se guia pelos fatos. Cada um que faça a sua parte. Eu mesmo me lembrei de que cometi uma falha contra o México e não usei a mesma cueca do jogo contra a Croácia. Mas agora eu peguei essa cueca no cesto de roupa usada, não deixei que lavassem e a falha foi corrigida. A Croácia já descascou o camarão, vamos à moqueca!
O Globo, 22/6/2014