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Soluções radicais

 

Parece que todo mundo saiu da cidade no feriadão, de forma que a rua está quase silenciosa, vazia de carros e mesmo de passantes, o desfile feminino é apenas uma sombra do costumeiro e houve quem temesse falta de quórum no boteco. Seus frequentadores mais fiéis, contudo, consideram meio vulgar esse negócio de viajar no feriadão, em vez de ficar, sensatamente, no boteco de todo fim de semana. E, assim, o meio-dia chegou para encontrar a postos praticamente a freguesia habitual completa, inclusive o comandante Borges, sorridente e afável, exibindo um surpreendente bom humor, depois que a bateria de sua moderníssima bicicleta elétrica pifou. Mas o Inimigo detesta a paz e a harmonia e, com suas maquinações diabólicas, está sempre montando armadilhas para atiçar a discórdia. Assim se deu, lamentavelmente, quando o comandante resolveu colaborar com a tradição de cultura da mesa, partilhando algo que tinha aprendido recentemente.

— Vocês sabem o que é um hipocorístico? — indagou ele. — Eu mesmo não sabia, só fui aprender ontem. Acho que tem mais algumas coisas, mas o hipocorístico de que eu estou falando é quando se chama alguém por um apelido derivado do nome dessa pessoa. Por exemplo, Beto, em vez de Roberto, Chico em vez de Francisco, Pedrinho, em vez de...

— Entendi. Então o seu hipocorístico seria Borginho.

— É a mãe! Me respeite, Borginho não! Borginho não! Deboche não! Como é o nome da senhora sua mãe? Ela...

— Calma, comandante, olha a pressão. Não faça isso, comandante!

Custou um pouco, mas ele pareceu ter-se acalmado e sentou-se de novo em frente a seu chope, alisando a cabeça com o olhar distante. O raro episódio de bom humor, entretanto, tinha ido embora para não mais tornar, o que se manifestaria logo em seguida, quando alguém comentou os prejuízos do comércio, com tantos feriados e feriadões.

— É isso mesmo! — esbravejou ele. — O feriadão é patrimônio do nosso povo! É melhor irmos logo nos acostumando. O nosso ideal, como povo e como indivíduos, é não trabalhar nunca! Esse é o nosso grande ideal! Eu tenho um sobrinho pequeno que, quando eu perguntei o que ele queria ser, disse que, quando crescesse, queria ser aposentado. O ideal é este, nós ainda chegamos lá. Ninguém no trabalho, todo mundo na praia, na internet ou no baile funk!

— Mas, comandante, alguém tem que trabalhar.

— É o que todo mundo pensa, menos o brasileiro. Querer o contrário é dar murro em ponta de faca. A solução para o Brasil só virá quando nenhum brasileiro mais trabalhar.

— Mas isso não seria possível.

— Claro que seria, aqui tudo é possível.

— Mas quem faria o trabalho necessário para a sobrevivência de todos?

— Parece que vocês não moram no Brasil. Chineses! Esse governo vai contratar chineses para fazer o trabalho pela gente. Daqui a pouco um marqueteiro do governo descobre isto e iniciaremos a importação de chineses. Enche isto aqui de chinês, chinês é ótimo para trabalhar sem reclamar, é uma tradição milenar. Vai ser o programa Mais Trabalhadores. O cidadão declara que não quer trabalhar, se cadastra no Ministério do Ócio e recebe tudo o que precisa, em forma de salários e bolsas, além de um personal chinese.

— E de onde sairia o dinheiro para custear esses salários e bolsas?

— Dos impostos pagos pelos chineses, é claro. Você pensa que o chinês não vai ter desconto na folha?

— Ha-ha, claro que o senhor está brincando, comandante.

— Brincando? Brincando estão eles! Eles é que brincam! E na primeira classe, enquanto o povo vai no bagageiro! Em tudo quanto é canto, você vê uma piadinha deles, eles nem se preocupam em renovar o estoque, como no caso da piadinha do dólar.

— Essa eu acho que não conheço.

— Conhece, sim, é que ninguém mais presta atenção no que eles dizem. O que é que acontece, quando o dólar sobe?

— Não sei bem, não sou economista.

— Nem precisa ser, é até melhor que não seja. Eu lhe digo o que é que acontece, quando o dólar sobe. Vem um porreta de lá e explica que a notícia é ótima, porque nossas exportações vão vender mais e se escoar melhor. Daí a algum tempo, o dólar desce e o mesmo porreta aparece para dizer que a notícia é excelente, porque facilita a importação de bens de capital pela nossa indústria. Eles querem o quê? Eles querem provar que eu sou burro e otário! Eles querem é me matar, isto é o que eles querem! E eu não posso me defender, porque eles desarmaram todo mundo, só quem pode ter arma é traficante e pivete. É pivete, o nome certo é pivete, não me venha com essa cara de Estatuto da Criança e do Adolescente, criança e adolescente são outra coisa! Qualquer pivete pode aceitar cinquenta reais de pagamento para invadir sua casa e matar você e toda a sua família, para depois tudo ficar por isso mesmo!

— Calma, recobre a calma, comandante, olhe a pressão.

— Eu não sossego enquanto eles não criarem o Bolsa Miami, para estender a todos os brasileiros a realização do nosso maior objetivo de vida, que é fazer compras em Miami. Viva o Ministério do Ócio, da Preguiça e da Moleza! O futuro é promissor e ainda veremos o Brasil de nossos sonhos, em que nenhum de nós trabalhará — um Brasil finalmente feliz, se bem que com um grande superávit de chineses. Eu só posso clamar por guilhotina, guilhotina!

O Globo, 27/4/2014