Há meio século uma geração ganhou de presente de 20 anos uma ditadura que a marcaria pela vida inteira com a memória da prisão, da tortura e do exílio. Aos mortos, só agora uma comissão presta a homenagem póstuma da verdade.
O golpe de 64, a pretexto de combater a corrupção e a ameaça comunista que supostamente pairava sobre o país, acabou com a democracia. O regime que se instalou não só foi corrupto como sequestrou com o terror instalado nas escolas a formação de crianças e jovens. Tentou inutilmente calar os artistas.
Liberdade, “essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, é como o ar, cujo valor só se percebe quando se é sufocado. Descobrimos o valor da democracia quando ela foi abolida. Os anos de chumbo produziram um clamor nacional pelo restabelecimento do regime democrático e já lá vão 30 anos das jornadas em verde e amarelo das Diretas Já. De lá para cá, três perseguidos pela ditadura chegaram à Presidência. A estabilização da moeda, as políticas de inclusão social e a irrestrita liberdade de opinião mudaram o país para melhor.
Mas a democracia exige uma reinvenção permanente. Neste momento inspira cuidados. As ameaças que pesam sobre nós são a generalização da corrupção e a banalização da violência, que têm uma raiz comum: o abismo entre o apodrecimento do sistema político e as expectativas cada vez maiores e mais definidas da sociedade.
A noção clássica de democracia pressupõe eleições, pluralidade de partidos, alternância no governo, equilíbrio entre poderes. Nada disso nos falta. O paradoxo é a coexistência de eleições majoritárias legítimas com um sistema político desmoralizado e uma sociedade dinâmica que faz ouvir sua voz.
O ideal da democracia representativa não se encarna nos desmandos de parlamentares, o que a coloca em risco, vítima não de ideias revolucionárias que envelheceram já no século passado, e sim de surtos de violência que, a múltiplos pretextos, se alastram. A esfera política, que mediava e representava os interesses conflitantes da população junto ao Estado, se desfez no ácido de seu próprio cinismo. O escárnio face à população desqualificou-a como interlocutora. Se não, como explicar a violência que frequentemente explode e incendeia uma rua qualquer do Brasil?
A banalização da violência eclode desvinculada dos grandes números que não acusam uma crise social aguda. Há baixo desemprego, indicadores de aumento de renda e de bem-estar material nas camadas mais pobres, redução constante, ainda que lenta, das desigualdades de todo tipo, sociais, raciais, de gênero, regionais. Há liberdade de imprensa e de opinião.
A crise social não está nos grandes números, está no sentimento das pessoas. A democracia que se quer não se esgota em eleições. Uma parte significativa da população defende valores — repudia a corrupção, que associa justamente a tudo o que lhe falta, quer ser respeitada e ter a liberdade de escolher sua vida e vivê-la em paz — e não encontra onde ancorar essas aspirações. Há um voto órfão que ninguém sabe, nas próximas eleições, para onde irá. Se for.
A fé cega e exclusiva na economia serve de antolhos à direita e à esquerda. O sobe e desce dos indicadores econômicos ignora que as sociedades têm uma dimensão moral, definem o que é justo ou injusto. Se assim não fosse, não se explicaria por que, há 50 anos, uma parte da juventude que vivia confortavelmente e tinha diante de si um futuro garantido, tenha arriscado a vida e o futuro no sonho de um país mais justo.
Esse artigo é dedicado às sucessivas gerações que lutaram contra a ditadura e aos jovens herdeiros dessa estirpe. Os que hoje não aceitam a corrupção e a desigualdade como uma peça do cenário nada esperam de partidos terminais e, rejeitando a violência destruidora, com imaginação criadora tecem a democracia com o fio espesso das microações que humanizam as pessoas, as cidades e o país.
A pluralidade está inscrita na democracia. Que as formas de exercê-la possam ser elas mesmas plurais ainda é pouco percebido. A democracia se faz com atores múltiplos que balizam seus passos pela ética, que vivem a liberdade e a defendem para todos, que exigem direitos que se traduzem em qualidade de vida. Esses, como células-tronco, têm o poder de reavivar tecidos mortos. O fundamento da democracia contemporânea não é o Estado, é o cidadão.
Uma democracia vivida no dia a dia é a melhor garantia de que nunca mais virá nos assombrar o pesadelo histórico que foi o golpe de 64.
O Globo, 29/3/2014