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"Guerra de religiões" e terrorismo cívico

 

O governo militar do Egito, às vésperas do ano novo, vem de condenar como terrorista toda a atividade da Fraternidade Muçulmana no país, A organização foi fundada em 1928 e está enraizada na tradição mais funda da busca da identidade nacional, ainda dos tempos do fim da hegemonia ocidental e dos tempos do rei Farouk.

É o remate de uma escalada que envolveu o golpe contra o presidente Mursi, legitimamente eleito, há dois anos, quando ainda se apostava no advento democrático, na esteira da Primavera Árabe. Preso, Mursi deveria responder por incidente de violência, nas sucessivas demonstrações de massa da Praça Tahrir. Já, agora, é todo o credo e toda a ideologia do partido que se incriminam. Mais ainda, basta a vinculação à Fraternidade para expor os seus membros a inquérito e detenção.

Remata-se, assim, a radicalidade,em que a “guerra de religiões” vem à frente das tensões políticas do Oriente Médio e associa a fé, de vez, ao terrorismo. A gravidade da decisão do governo do Cairo arrisca acender o país, a se atentar ao vulto dos partidários de Mursi e ao conflito larvar, espalhado em todo o circuito urbano do país.

Paradoxalmente, é no extremo oposto que o perigo da “guera de religiões” tem servido, até hoje, de álibi para a mantença do governo Assad, na Síria. Os rebeldes estariam associados ao extremismo islâmico, em larga maioria, e a manutenção do regime, em todos os seus apoios e repúdios, é vista como a garantia de um pluralismo religioso pelo regime. Significativamente ainda, ainda a descompressão iraniana do primeiro-ministro Rouhani que exemplificar uma baixa de guarda, no que foram, na contramão da modernidade, o implante do regime da Sharia pelos aiatolás e a absoluta integração entre o poder religioso e o poder político. 

Mal avança, por outro lado, uma consciência internacional do estado de direito no mundo pós-Bin Laden, no que é a recente declaração de Ayman al-Zawahiri, seu sucessor, considerando o terrorismo como a prórpia condição de sobrevivência de um mundo de diferenças religiosas e de radicais afirmações identitárias. Zawahiri é explícito: vem de reiterar que "a violência é constitutiva da coexistência política contemporânea, tal como uma amputação é essencial à sobrevida do corpo doente". Ela só recrudesce pelas agressões de grupos suicidas, como iniciado no 11 de setembro e com a explosão dos homens-bomba, na plena assunção do seu martírio pela sobrevivência da crença Isso só reitera, por outro lado, a ortodoxia muçulmana e a dificuldade crescente de se estabelecer a garantia dos direitos humanos como constitutiva da paz em nosso tempo.

Alguns líderes podem, inclusive, reiterar que o estado de direito é uma ideologia do imperialismo ocidental. De toda forma, o vulto das reações esperadas à decisão dos militares, no Cairo, fica como uma última interrogação à coexistência entre democracia e religião, frente à trazida de credos à hegemonia ou  à clandestinidade total.

Jornal do Commercio - RJ, 17/01/2014