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Agenda 2014

 

O ano que termina deixa como legado para 2014 uma agenda em fermentação nas cidades.

O humor do país mudou. No ritmo das incertezas da economia deslizamos da euforia à depressão. O otimismo com o futuro deu lugar ao desencanto. Essa ciclotimia não rima com a realidade em que os ganhos acumulados ao longo dos últimos vinte anos não se perderam, o que a melhoria constante dos indicadores sociais confirma.

Mas nem só de economia vivemos. Melhorias na renda e no consumo coexistem com efeitos colaterais imprevistos que, como um bumerangue, atingem o cotidiano, a exemplo da explosão do consumo de automóveis. Três milhões e quinhentos mil veículos saíram das fábricas e paralisam as cidades. Enxames de motociclistas, símbolos de prosperidade na população de baixa renda, passam ao largo das regras do transito e convivem diariamente com a morte.

As grandes metrópoles e seus impasses — transportes precários, imobilidade nos engarrafamentos de pesadelo, insegurança face à violência — tudo que envenena o cotidiano integra agora o rol das amarguras ao mesmo título que as sempiternas escolas que não ensinam e os hospitais superlotados. As grandes cidades, sistemas em colapso, são fábricas de estresse e frustração.

Os tempos mortos no trânsito aumentam a jornada de trabalho sem outra remuneração senão a raiva, congelando o tempo que resta à convivência com a família e amigos. A maioria dos brasileiros vive nessas metrópoles infelizes e ásperas, espetando-se em suas arestas, padecendo desse mal-estar urbano que se agrava. Essas metrópoles continuarão a gritar e são elas os maiores colégios eleitorais.

As intenções de votos nulos e brancos que as pesquisas começam a detectar, os cartazes de “fora todos”, dizem o desgosto da população com a corrupção, comprovado no apoio maciço, inclusive de eleitores do PT, à punição dos mensaleiros. Corrupção e justiça, crime e castigo entraram na agenda.

A sociedade brasileira — conceito cada vez menos operacional para explicar as complexidades de uma população de duzentos milhões, vivendo com alto grau de desigualdade e mobilidade social, em plena cibercultura — retribui à altura o desprezo que os políticos têm por ela. O que está em tela de juízo é a democracia que não sabemos mais como chamar, já que representativa há muito deixou de ser. Reinventá-la é preciso.

Em 2013 a internet se afirmou como arena concorrendo com jornais e televisões pela influência na opinião. Ninguém quer ser apenas espectador de programa eleitoral, não quer ser influenciado, quer influenciar. Cada um vê a si mesmo como mídia e se manifesta. Antigos bate-bocas de bar ganharam uma imprevisível audiência. No Facebook a juventude, com as armas da informação viral, vive seu movimento de libertação da palavra.

O sentido e amplitude desse fenômeno começam a ser percebidos por candidatos egressos da política dos aparelhos que, aflitos, apelam aos nerds como cabos eleitorais, na esperança de controlar a arena virtual como se fosse um curral eleitoral. A crescente e feroz agressividade nas redes sociais, facilitada pelo anonimato das múltiplas identidades, mostra que elas foram contaminadas pela radicalização que precede os anos eleitorais.

A radicalização é um vírus perigoso, o ódio é contagioso, se propaga e se retroalimenta. Neste ano veio às ruas como violência selvagem. A apropriação dos protestos de junho por grupos minoritários numa ainda não esclarecida combinação de personagens exige a definição clara da fronteira entre o que, numa democracia, é protesto legítimo e o que é violência ilegal.

Acirrou-se também o enfrentamento entre o conservadorismo que tenta impor normas a serem seguidas por todos e os defensores da liberdade de cada um construir sua própria vida. A sexualidade escapou da vida privada, fez-se debate publico que, assim como nos Estados Unidos, poderá ser determinante na escolha entre os candidatos.

Se a agenda que emergiu em 2013 — mal-estar urbano, repúdio à corrupção, defesa das liberdades — for levada em conta, as manifestações de junho terão realizado a proeza de aproximar a política da sociedade. Se cair no esquecimento, como se junho não tivesse sido senão um inexplicável sobressalto, a irrelevância do debate eleitoral selará o divórcio litigioso entre o mundo autista da política e a vida real da população.

Nem por isso a vida deixará de ser real com sua carga de tensões e frustrações. Uma não resposta não elimina o problema. Agrava. Bem-estar, liberdade e honestidade são claras aspirações dos brasileiros.

O Globo, 7/12/2013