Sabemos todos que a História muda segundo quem a observa. Para os contemporâneos dos fatos, a importância que lhes é dada frequentemente é bem distinta da que terá dentro de poucas décadas. O que era invisível aparece, o que não tinha importância a adquire, o que era básico se torna acessório, quem era tratado como gênio ou esperança nem mais é lembrado. E o anedotário de todos os povos armazena uma fartura de previsões hoje estapafúrdias, vaticínios que se demonstraram asneiras descomunais, afirmações definitivas cuja validade mal chegou a aniversariar. Mas isto não impede que continue irresistível a tentação de dar palpites sobre o chamado veredito da História, é uma espécie de jogo que pode até ser divertido, assim para um domingo ocioso, sem nada melhor para fazer.
Não creio que nós, os contemporâneos do mensalão, estejamos, no geral, enganados quanto à importância histórica do julgamento. Até apostas estão sendo resolvidas pelo Brasil afora, porque houve muitos que empenharam um dinheirinho na convicção de que não viria cadeia para nenhum dos réus engravatados e influentes. Nada realmente autorizava a crer que fosse acontecer algo de muito diferente do que acontece desde o tempo do Marquês de Pombal. Até alguns ministros do Supremo Tribunal Federal eram, ou são, considerados comprometidos com o partido no poder e muito se comentou que, no caso do ministro Joaquim Barbosa, sua nomeação foi tencionada para resultar no mesmo tipo, digamos, de apoio — só que, neste caso, como dizia meu amigo Cuiuba, alguém tomaram um bonde errado.
Em outros contextos, o assunto já estaria morrendo. O julgamento engasgou bastante, rateou várias vezes e suscitou um número espantoso de besteiras e bravatas, mas acabou chegando ao fim, depois de anos de doloroso trabalho de parto. Pronto, assunto encerrado, sentenças em cumprimento, está na hora de cuidar de outras coisas, nossos problemas são bem mais graves e não cabe ficar falando mais em presidiários, já acabou. Só que, como temos visto, não acabou. Os condenados, que insistem em ser considerados presos políticos, também mobilizam apoio para a tese de que são inocentes e vítimas de uma espécie de golpe e de instituições que se perverteram para destruí-los.
Qualquer presidiário, em qualquer tempo e de qualquer natureza, invariavelmente se declara inocente, direito garantido pela liberdade de expressão. Mas a avaliação que os presos do mensalão fazem de seu papel nesses acontecimentos para mim será inteiramente diversa, dentro de pouco tempo. Eles de fato são, como quase chegam a pintar-se, mártires da democracia — e eu acrescentaria do progresso —, mas não no sentido de que foram atingidos por grupos (?) que manipularam as instituições democráticas para levá-los ao cárcere, tratando-se, pois, de uma falsa democracia, que precisa ser reformulada.
Eles são mártires da democracia, do progresso e — de novo faço um acréscimo — da igualdade, porque, através de seu suplício, demonstra-se, finalmente na prática e não no gogó — que figurão poderoso da elite governante ou financeira também pode ir para a cadeia, banqueiro importante também pode e pode até ser fugido do xadrez como qualquer ladrão de galinha, mulher rica pode, deputado pode, qualquer um pode. Este é um compromisso das instituições que agora ultrapassa o palavreado gongórico das leis que exaltam a soberania popular, em direção à realidade compreensível por qualquer um. Os governantes atualmente no poder não deviam agir tão compungida ou petulantemente, diante do cumprimento das sentenças; deviam vangloriar-se e mostrar ao mundo que agem conforme o que professam.
São mártires da democracia, do progresso, da igualdade e — lá vai novo acréscimo — da educação, porque, logo nos primeiros dias de cadeia, provocaram esclarecimentos envolvendo direitos dos cidadãos. Tratados, sem razão ou embasamento jurídico, de forma privilegiada em relação a outros presos, na questão das visitas, logo tiveram de ingressar, por pressão dos discriminados noticiada pela imprensa, no mesmo regime que os demais. Outros privilégios foram, ou serão certamente coibidos. Na cadeia, o único doutor deve ser o diretor da enfermaria. Tudo igualitário e educativo, exatamente o que eles sempre defenderam politicamente, mas nunca conseguiram implantar pelos métodos que tentaram, notadamente o de comprar adesões e agir como se a coisa pública devesse ser de quem consegue gastar mais dinheiro — o que talvez seja uma verdade cínica, mas deve ser rejeitada pela boa consciência e não pode constituir a forma de agir do governante. Indo para a cadeia, fizeram muito mais para a consecução dos ideais e objetivos proclamados que quando em liberdade.
Através desse martírio, chama-se também a atenção para problemas talvez menores, que de vez em quando ocupam um governante ou outro, mas jamais de forma decisiva ou que leve a uma ação eficaz. Um deles é a situação dos presídios e cadeias. Que vergonha seria para a famosa imagem nacional, se aparecesse em alguma revista ou tevê americana um ex-dignitário brasileiro confinado numa cela junto com mais oito condenados, um cano de água fria saindo da parede, um vaso sem tampa e demais componentes talvez da maior parte das celas brasileiras. O espetáculo das duas senhoras condenadas expostas a vexames também é uma visão vergonhosa, deprimente e lamentável. Sempre foi assim, mas não se notava com muita clareza, cabendo aqui, mais uma vez, a venerável observação de que no dos outros é refresco. Agora que o dos outros pode vir a ser o nosso, teremos mudanças. Estes são os grandes legados dos mártires, os que nosso futuro guardará. Se não guardar, vai dar-se mal.
O Globo, 24/11/2013