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Opinião da vaca

 

Não aprecio memórias, quando entendidas como gênero literário. Evidente que sou obrigado a respeitar os grandes momentos que Santo Agostinho e Rousseau nos deixaram. Mas é um respeito distante, formal. Que nada tem a ver comigo. Volta e meia me distraio com os memorialistas, e alguns são excelentes, podendo citar Gilberto Amado, Afonso Arinos, Humberto de Campos e Joaquim Nabuco, para citar autores nacionais. Mas há um esquema interior e anterior, estrutural, que me impede a total empolgação pelo gênero.

Ao escrever memórias, o autor fatalmente se coloca numa posição absurdamente cômoda, inclusive para fazer restrições à própria vida. Até Malraux, que levava um jeito de ensaísta para o romance ("A Condição Humana"), ao fazer as suas "Antimemórias" blefou bastante um profissional percebe isso.

Vai daí, e embora esteja longe do tempo de pensar em memórias, bolei uma contrafação para o gênero. Pode parecer uma molecagem literária e vai ver que é. Em vez de escrever memórias, pretendo escrever um robusto ensaio histórico intitulado: "Cony e seu tempo". Será assinado por um pseudônimo, um sujeito muito mal informado sobre o meu tempo e principalmente sobre a minha pessoa. O importante, no caso, não será o personagem em si, mas o tempo em que o personagem viveu, ou seja, o nosso tempo, o meu tempo.

No fundo, esta ideia que me persegue é subproduto de um romance que está em gestação há tempo: "Opinião da vaca sobre a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, nos finais do século 20". Seria uma comovente confissão de uma saudável e pródiga vaca que emitiria juízos e sábias sentenças sobre fatos, homens e coisas do nosso tempo.

Talvez a opinião de uma vaca seja mais aproveitável do que a do autor que vou inventar para narrar os nossos probleminhas mesquinhos e pessoais. Em geral, o romancista inventa uma história. Eu inventarei um autor que, com uma dose bastarda de informação e conhecimento, procurará interpretar a vida de um pobre coitado que se espalhou por aí, no tranco da vida.

Tem mais: o memorialista, quando pega da pena ou abre o computador e mete os peitos em sua própria biografia, sempre se detém antes do fim. Por motivos óbvios não escreve sobre o fato mais importante de sua vida, que é a própria morte, esperando viver o suficiente para ser compreendido pelos contemporâneos, sobretudo depois que resolveu se explicar em público. A menos que recorra a um tipo de memórias póstumas, como fez Machado de Assis, que tentando contar sua vida, deixou em aberto um enigma que até hoje não foi decifrado.

No meu caso será diferente. O autor que escreverá o livro sobre a minha pessoa é tão papo furado que narrará minha doença, desenlace, e o olvido fatal dos dez primeiros anos depois da morte, e depois, lentamente, a restauração, a revisão histórica do personagem e da obra tudo na base bastarda anunciada. Afinal, será a opinião de uma vaca.

Assim, a posteridade que me esperará segundo o autor de "Cony e seu tempo" pensará que fui um sujeito completamente diferente do que sou. Basta dizer que, por um erro qualquer de classificação bibliográfica, eu serei tido como autor do Ato Institucional nº.1 e do Projeto da Anistia. De quebra, também me serão creditados alguns sambinhas de Antonio Carlos e Jocafi e minha glória maior terá sido o meu casamento com a Marília Gabriela um acontecimento tão relevante quanto a bomba atômica, a penicilina e a polêmica sobre as biografias autorizadas.

É glória demais. De qualquer forma, acho que mereço essa consagração tardia e punitiva. No fundo, será a opinião de uma vaca, não muito diferente da minha.

Folha de S. Paulo, 22/11/2013

Folha de S. Paulo, 22/11/2013