Volto ao tema da proibição das biografias que, como ressaltou o jurista Joaquim Falcão, muito além da violação da liberdade de expressão, "fere gravemente a liberdade acadêmica, a liberdade de ensinar e de pesquisar". Quero chamar a atenção de um perigo, mais um, que ameaça a imprensa livre como efeito colateral da nova proposta apresentada por Roberto Carlos.
Em boa hora, portanto, a Academia Brasileira de Letras (ABL) decidiu ingressar como “amicus curiae” na ação direta de inconstitucionalidade (Adin) que a Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) move no Supremo Tribunal Federal contra a censura às biografias não autorizadas. Estará lutando também pela liberdade de imprensa, como veremos.
Essa nova tese de aceitar o fim da necessidade de autorização dos biografados com a ressalva de que caberá ao Judiciário decidir no caso a caso o que representa ou não violação de privacidade, na prática mantém tudo como está hoje, foi uma forma inteligente que o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay encontrou , seguindo o conselho do Princípe Falconeri no livro O Leopardo, de Lampedusa, de mudar para deixar tudo como está.
Os biografados, especialmente os que têm bons advogados, irão ao Judiciário contra os livros que contiverem informações que lhes desagradem e obterão liminares proibindo as publicações ou determinando a supressão do que incomodar, sempre com base na invasão da privacidade/intimidade.
Essa nova estratégia é muito mais perigosa do que a anterior, de exigir autorização prévia dos biografados, porque aparenta uma disposição para o diálogo que fez, erroneamente, que se pensasse que Roberto Carlos havia recuado de sua posição inicial, quando na verdade ele está apenas tentando se livrar do estigma de promover a censura prévia de livros.
Mas o seu objetivo continua o mesmo, controlar o fluxo da informação, tentando escrever a História de acordo com o seu ponto de vista, o único verdadeiro segundo sua curiosa maneira de ver as coisas.
Ocorre que o assunto pode acabar tendo conseqüências mais graves do que a já absurda censura às biografias: os mesmos artigos 20 e 21 do Código Civil que são interpretados como fundamentos para proibir as biografias, também podem servir para proibir matérias jornalísticas que supostamente invadam a privacidade de alguém.
Os artigos 20 e 21 em momento algum citam a palavra “biografia”. Eles protegem a imagem e a intimidade contra "usos comerciais", a edição de livros tem sido entendida como um uso comercial, e não há razão para que o jornalismo não o seja.
Se o STF entender que o Judiciário, na ponderação de casos concretos, pode decidir que a intimidade de uma pessoa pública deve prevalecer sobre o interesse da sociedade na livre circulação de informações, a porta estará aberta para que a mesma tese se aplique ao jornalismo.
Um advogado amigo me chamou a atenção para o fato de que para o Procure Saber (ou o que restou dele) a invasão de privacidade não é violar a lei para obter ilegalmente informações sobre uma pessoa (invadir residência, arquivo pessoal, correspondência, computador, etc.).
Invadir privacidade seria divulgar informação que, ainda que disponível em fontes legais, no juízo subjetivo do biografado, e em última instância do juiz que examinar o caso, esteja no âmbito da vida privada da pessoa.
Muito do dia a dia do jornalismo pode ser enquadrado nesta categoria, dependendo da avaliação subjetiva que se fizer. Teríamos que lidar com liminares por todo o Brasil alegando invasão da vida privada em matérias jornalísticas, com respaldo em uma decisão do STF.
Existe um perigo efetivo por trás de tudo isso, e é preciso lembrar que o advogado Kakay tem clientes que não gostam nada da imprensa e podem se beneficiar desta decisão.
O Globo, 5/11/2013