Não tenho completa certeza, mas acredito que a maioria de nós ainda não se esqueceu do julgamento do mensalão, um processo iniciado há aproximadamente dez anos que vinha dando muito o que falar e, superado apenas pela derrota do Botafogo e pelo início da recuperação do São Paulo, deve ter sido o assunto mais comentado na semana passada, pois não é que Seedorf perdeu um pênalti crucial e Murici Ramalho volta a mostrar sua estrela? Sei que alguns de vocês, os que não se esqueceram, pensam que faço chiste, mas não é verdade, pois há também o vastíssimo contingente de nossos patrícios que não entende nada do que está acontecendo. Uma vez ou outra, lá em Itaparica, à porta de sua casa, o hoje finado seu Manuel Joaquim esperava sorridente minha passagem, para me cumprimentar e revelar seu orgulho conterrâneo por ter ouvido falarem em meu nome no rádio, um menino que ele vira nascer, parecia que tinha sido ontem. Ah, muito obrigado, e o que foi que disseram, seu Manuel Joaquim? Bom, isso ele não sabia informar direito, mas o homem tinha falado bastante tempo em mim, uma coisa muito especial mesmo, ele estava seguro de que me tinham elogiado.
Entre os frequentadores do Bar de Espanha, a situação não é muito diversa. Logo depois da decisão do Supremo, Zecamunista deslocou-se para local ignorado, na companhia de duas correligionárias, para realizar um tal retiro dialético-espiritual, em que, segundo ele, uma companheira faz a tese, a outra faz a antítese e ele faz a síntese das duas, não conheço bem os detalhes. Mas, num esforço de reportagem que envolveu telefonemas para, entre outros, Xepa, Jacob Branco e Toinho Sabacu, pude ter uma ideia de como está a nossa atual conjuntura. Xepa recusou-se a fazer comentários, porque a aposentadoria dele finalmente está para sair e ele não é besta de se arriscar a falar qualquer coisa que possa melindrar os homens, não se joga fora assim uma vida de trabalho. Jacob Branco fez um discurso inflamado, em que afirmou que as belas palavras usadas para explicar o processo “são apenas bolodório vaselinório para o enfiatório de mais um sesquipedal supositório no sofrido subilatório dos simplórios”, mas não se estendeu na costumeira eloquência, pois ainda está lapidando o discurso, cuja versão definitiva será pronunciada na porta da Câmara de Vereadores, em data ainda não marcada. E Sabacu, como já se esperava, deu uma resposta filosófica e criou mais um neologismo.
— Eu não tive decepção nenhuma — disse ele. — Só quem pode ter decepção é quem primeiro teve a cepção. Como eu nunca tive cepção nenhuma quanto a esse pessoal, não ocorreu decepção. A única decepção que eu sofro às vezes é com o Flamengo, mas isso porque já tenho a cepção rubro-negra desde o tempo de Servílio, Dequinha e Jordan, não vai se comparar a esse povo. Minha posição continua eles lá e eu cá. Ficando eles lá e eu cá, já dá para botar as mãos para o céu todo dia, Deus é mais.
Pensei no assunto e cheguei à conclusão de que também não tinha muita cepção, de forma que só me decepcionei no primeiro minuto e logo caí de volta na realidade. Não importa o que se ache da decisão da quarta passada, ela confirma que nossa estrutura judiciária e processual é pervertida e que não é mesmo de nossa tradição levar a julgamento e muito menos condenar os poderosos e bem situados. Todo o sistema reage automaticamente, como se estivesse tendo uma intolerância alimentar. Ele não foi feito para isso, foi feito para privilegiar mesmo, para dar vantagem a quem tem influência, para só punir os pequenos, para permitir o prolongamento indecente das demandas, para tudo o que a gente tem visto — do que o julgamento do mensalão é mais uma manifestação e talvez sua única originalidade esteja em que, pela primeira vez, tantos figurões foram alvo de um processo tão rumoroso. Na hora em que se busca usar todo esse complexo sistema com o objetivo de obter algo para o qual ele não foi construído, dá nisso, numa justiça que se engasga, em permanente loop e decisões ioiôs, que vão e voltam infinitamente, entre óbvias e deslavadas manobras meramente protelatórias e chicanas que não cessam de produzir-se, num festim processual extravagante e descomedido.
É possível que evoluamos e, em passos relutantes e pouco decididos, consigamos deixar esse estado de coisas, mas é também possível que o sistema se reconfigure, para preservar a proteção aos que lhe são caros e para uso dos quais ele foi montado e aprimorado, numa história que se desenrola há séculos. Uma das reações do sistema, por exemplo, pode ser a criação dos embargos rotacionais, os quais, para usar o latinzinho adornativo de costume, serão chamados de embargos propter rotationem. Esses poderão ser apresentados pelos condenados em última instância, se, antes da execução da sentença, qualquer juiz vier a ser substituído, por qualquer motivo. Num passo adiante, poderemos instituir o embargo reviratório, que derroga todas as condenações, se mudarem quatro ministros, no mesmo prazo que o exemplo anterior. E, para dar um toque mais democrático, teremos o embargo divergente, que é quando o condenado, através de seu advogado, comunica ao tribunal que diverge frontalmente da sentença, ao fim do que recebe um prazo, com efeito suspensivo, de seis meses, prorrogáveis por mais seis, para coletar assinaturas em apoio da divergência. Claro que, para não vulgarizar a justiça, caberá recurso também dessa decisão, porque é para não resolver nada mesmo, a ideia é esta. Durante uma das últimas sessões do Supremo, um dos ministros comentou que, desse jeito, a justiça não fecha. Vejam como a percepção é afetada pela posição do observador. Do lado de cá, a impressão que muitas vezes se tem é de que ela já fechou há muito tempo.
O Globo, 22/9/2013