Claro, essa discussão toda sobre a espionagem dos americanos faz parte de um ritual incontornável. Exposto a público o problema, ficaria muito chato, se o Brasil não protestasse e não tomasse outras medidas vistosas, sem descambar para a bravata, como, louvavelmente, tem feito até agora. Por seu turno, os americanos também seguem com aplicação a boa prática entre tradicionais e inseparáveis aliados. Emitem documentos e pronunciamentos respeitosos e fazem promessas e esclarecimentos que não esclarecem nada, assim como nossas reações tampouco resolvem nada. É isso mesmo, a gente vive dançando esse tipo de balé ao longo da história da civilização.
O que não impede que se enxergue a futilidade, meio cômica e meio patética, desses atos e se pense uma bobagem dominical ou outra. A primeira observação que me ocorre, em relação ao nosso caso, é que, sim, os Estados Unidos nos espionam, mas nós, pode-se dizer, já os espionamos também, ainda que de forma indireta. Edward Snowden, ao revelar que os Estados Unidos espionam o Brasil, foi nosso espião junto às agências de segurança americanas. Mostrou até que espionam a Petrobras e daqui a pouco, quem sabe, espionarão as preleções secretas de Felipão e o modelo de organização do jogo do bicho, não há limites para esse negócio.
O que não podemos é nos deixar envolver pelas técnicas e táticas do oponente. É mais fácil a gloriosa equipe da Real Agremiação de Bola ao Cesto de Itaparica, que não treina há uns quinze anos, encaçapar oitenta pontos no campeão da NBA do que a gente ganhar dos americanos em espionagem — e, ai de nós, em muitas outras áreas. Querer lutar usando as armas deles é esforço vão e fadado ao mais acabrunhante desastre. Em vez disso, anotemos em que ponto se revelaram vulneráveis a nossas armas. Não foi na tecnologia, foi no chamado fator humano, foi um funcionário de confiança que teve acesso aos dados. Mas para nós não interessa, não estamos em competição tecnológica e acesso é acesso, qualquer que seja a forma de sua obtenção.
Chego a ficar nervoso com a astúcia diabólica de meu plano. Baseio-me na falada natureza humana. O Snowden, ao que parece, agiu por idealismo, mas a experiência ensina que esta não é a regra. Agir por dinheiro e vantagens é bastante mais comum. Então, vamos a um exemplo. Depois de uma pesquisa esperta, como somente nós sabemos fazer, chegamos ao nosso alvo, um certo Will Snitch, alto funcionário de secretíssimas transas eletrônicas, numa agência de segurança americana. Aí oferecemos a ele o nosso pacote, que logo será conhecido nas rodas espionísticas (perdão) como o BBBB, o Brazilian Bountiful Bribe Bundle — mais ou menos a Generosa Trouxa Brasileira de Suborno. É só entregar a mercadoria, que ele recebe o BBBB, ou, para os íntimos, o B4.
Para nós é trivial, mas, para americano, ou para qualquer outro gringo, é um paraíso terrestre inimaginável. O B4, numa proposta inicial que ainda pode ser muito aperfeiçoada, incluiria a naturalização imediata do espião, para que ele não fosse extraditado de volta para os Estados Unidos. Em seguida, alojado num amplo apartamento funcional em Brasília, seria nomeado para um cargo comissionado no Senado com a remuneração mais alta possível e todos os direitos, de catorze meses de salário a carro com motorista e seguro-saúde no Sírio-Libanês para toda a família, cartão corporativo sem comprovação de despesas, viagens gratuitas em jatinhos da FAB, boas colocações para a mulher, os filhos e o cunhado e mais o que eu possa ter esquecido, no rol tão vasto da nossa munificência. Com dois anos de serviço, o estresse suportado por ele e a família, diante de todos os desafios enfrentados, cobraria seu preço e ele seria aposentado com todos os direitos integrais, para um justo repouso em algum lugar encantador, neste esplêndido país que o acolheu.
Deve, porém, ser lembrado que haveria o perigo de gente em demasia vir a saber da oportunidade, com o resultado de que o êxodo de pessoal qualificado, entre os órgãos de segurança americanos, poderia atingir níveis alarmantes. De fato, o B4, embora aqui tão encontradiço quanto feijão na feira, é inexistente lá fora, de maneira que talvez não seja arriscado demais crer que o próprio Obama ficaria meio balançado com essa história, o que demonstra os limites que devemos impor à nossa ação internacional, pois não seria oferecendo a ele um cargo muito mais atraente que o de presidente dos Estados Unidos que obteríamos ganhos a longo prazo, não nos interessa desestabilizar politicamente os Estados Unidos. Já basta nosso arsenal econômico, que um dia destes eles podem pleitear ser classificado na mesma categoria que as armas químicas, pois sabem que em caso de necessidade, o Brasil deflagra uma ação que muitos consideram desumana, pelos efeitos devastadores em todos os envolvidos. Está sempre de prontidão o Embargão, nome do programa arrasador que bloqueia compras por brasileiros em Miami e Nova York, golpe de morte no comércio e na indústria do país amigo, precipitoso mergulho de seu PIB, choro e ranger de dentes na alma do consumidor nacional.
Não, nada dessa violência, vamos pensar em outros aspectos, não tão inquietantes. Instalou-se uma CPI no Senado, para investigar a espionagem. Oportunidade para muita coisa boa. Por exemplo, leio aqui que os membros da CPI estão planejando ir à Rússia, para ouvir pessoalmente o Snowden. Muito justo, pois encará-lo olhos nos olhos é essencial e sugiro mesmo umas estadas em Paris, Londres e Berlim, para sondar a situação na Europa como um todo. E não esqueçamos a discussão sobre se a CPI acabará em pizza ou em hambúrguer castigado no ketchup, belo momento de aproximação de culturas. Melhor assim. Um conflito armado seria muito desgastante para ambos os lados.
O Globo, 15/9/2013