Como vemos o tempo todo, o Estado, entre nós identificado ilegitimamente com o governo, cada vez mais interfere em nossa vida pessoal. Falta pouco para baixarem regras sobre o que devemos comer em casa (nas cantinas escolares, já baixaram e em breve algum alegre aí vai propor que os restaurantes só sirvam sobremesa se o freguês apresentar certidão negativa de diabetes), fundarem o programa Mesada Mínima para proteger nossos filhos de nossa eventual mesquinharia e instalarem câmeras nos banheiros domésticos, para pilhar possíveis deslizes em nossa higiene, consumo de água excessivo, uso do vaso em padrões anômalos e assim por diante, dessa forma colhendo dados preciosos para melhor nos proteger e aprimorar nossa qualidade de vida.
Ingratos que somos, nem suspeitamos do alcance de certas medidas. Agora mesmo, nós, os felizes residentes da cidade do Rio de Janeiro, estamos prestes a ter a cidade mais limpa do mundo. Com grande severidade, agentes públicos acionam maquinetas moderníssimas e já multaram até quem jogou na calçada um palito de fósforo. Aplausos, aplausos, todos os brasileiros querem o Rio de Janeiro limpinho. Mas logo uma contestação chegará aos tribunais, que vão encarar sérios problemas epistemológicos, como, por exemplo, se a cinza espalhada pelo vento que deu na ponta de um cigarro constitui lixo jogado na rua, mesmo que não haja resquício visível dela. Em termos genéricos, o vento, em casos de lenços ou guardanapos de papel arrebatados de supetão, exclui o ilícito? Em área mais delicada, se o cidadão tem um engasgo no meio da rua e cospe antes de poder pegar um lenço ou chegar perto de uma cesta, paga multa por cuspir, digamos, em legítima defesa? Nos casos de dúvida fundada sobre quem jogou a guimba fora, prevalece o testemunho de quem? A quantos segundos tem direito quem joga fora algo, para se arrepender e pegar o objeto de volta? Quem cronometra? Haverá lixo doloso e lixo culposo?
São graves questões, para cuja dilucidação certamente se requererá a participação de vários setores profissionais e da sociedade civil. Mas, na verdade, a política de tolerância zero quanto ao lixo é apenas uma fachada. Como a gente via nos filmes de detetive, é indispensável olhar além das aparências e talvez os cariocas encarem como uma bomba a notícia que vou dar. A notícia, claro, é que, por trás dessa aparentemente inócua medida, está um plano de grande astúcia, para reduzir quase a zero os crimes por arma de fogo, no Rio de Janeiro. Pensem aí. Pois é, a mim também só ocorreu depois de matutar bastante. As armas de fogo mais potentes costumam cuspir fora as cascas das balas, que geralmente caem no chão. Sacaram? Isso mesmo, caiu no chão, vira lixo! No momento em que o vagabundo der o primeiro tiro e a casca da bala cair no chão, o fiscal do lixo vai lá e dá um "guentaí, mermão" no meliante, tacando-lhe a multa logo em seguida. Muito sagaz, essa medida, temos que tirar o chapéu. Não pode papel de embrulhar bala de chupar, claro que não pode também casca de bala de atirar. Se tivessem feito uma campanha de tolerância zero à violência, a bandidagem ficaria em alerta. Com a campanha do lixo, ela é colhida de surpresa. Dar-se-á fenômeno análogo ao que aconteceu em São Paulo, com a zelosa campanha pela abolição do cigarro em locais públicos, até mesmo debaixo de uma marquise. Hoje os assaltos aumentaram, mas o número de assaltantes fumantes caiu vertiginosamente, porque eles sabem que, se fumarem, a cana pega. Querem ver, botem um cigarro aceso no bico e vão fazer arrastão num restaurante paulistano. Não passarão da porta de entrada, qualquer assaltante sabe disso. No Rio, dar tiro vai sair os olhos da cara, com certeza levando o bandido a pensar duas vezes, antes de atirar.
Muitas das últimas novidades têm a ver com o futebol. A gente aceita tudo o que nos impõem não se sabe de onde, ou mesmo que se saiba, até chamar os estádios de arena isso ou aquilo. Em nossa língua, é "estádio" ou "campo" e arena é do Coliseu romano ou é picadeiro, mas todos cedem a essa imposição descabida. Que é que o autor dessas mudanças faria, se a imprensa continuasse a chamar as "arenas" de estádios? Punir os jornais e a tevê, proibir a transmissão e a cobertura de jogos? Mas aceitamos ovinamente até mesmo que algum paspalho invente e depois nos impinja palavras grotescas, como "Paralimpíadas" - e dá saudade de Ary Barroso, porque tenho certeza de que ele a denunciaria como uma burrice traidora da pátria e se recusaria a usá-la.
Nossa conduta como torcedores também está sendo objeto de normatização. Já soube que ninguém vai poder entrar com instrumentos musicais numa arena, acabaram de matar de vez a charanga. Os torcedores também deverão observar uma série de regras, entre as quais não usar palavrões. Como os palavrões diferem regionalmente, tanto em vocábulos quanto em seus significados e usos, creio que será necessária a elaboração de um glossário de turpilóquios para cada cidade onde há arenas, com um 0800 e um site na internet, a fim de esclarecer o torcedor sobre a linguagem admissível em determinado local. E será também inevitável a proibição de epítetos que ofendam qualquer categoria, inclusive as prostitutas, tão injustamente presentes nos atuais xingamentos. Mas os avanços reais estarão nas conquistas contra a exclusão, a discriminação e a injustiça. Cada time terá um limite máximo de torcedores, excedido o qual haverá cotas para os de torcida muito pequena. Chega à casa do torcedor uma mensagem do governo: "Comunicamos que o Flamengo já preencheu sua cota de torcedores e, nos termos da Lei de Igualdade Desportiva e do programa Torcida para Todos, V.S. passa agora a torcer obrigatoriamente pelo Fluminense de Feira de Santana". Não tem jeito, mas talvez devamos até pôr as mãos para o céu, enquanto eles se contentarem com o futebol.
O Globo, 25/8/2013