Quando acontecem, no Brasil, fenômenos religiosos da proporção do que vemos agora, e isso exige algum tipo de participação dos poderes públicos, sempre aparece alguém para lembrar que o estado é laico, e que essa participação é espúria. Me parece uma interpretação muito rigorista. O estado é laico, sem dúvida, mas a cultura brasileira está impregnada de simbolismos religiosos, bastando lembrar o desfile das grandes festas que são o Natal, a Páscoa, as festas juninas. Quando voltamos às origens da nossa história, o que vem à cabeça? O quadro famoso da Primeira Missa no Brasil; o fato de que a terra recém-descoberta chegou a se chamar Terra de Santa Cruz; os nomes de santos que estão por toda parte: São Paulo, São Vicente, Espirito Santo, Santa Catarina ...
Se passamos dos símbolos para a história real, descobrimos que os jesuítas - a que pertence o papa Francisco - estavam ali desde o início, fundando as primeiras escolas ao lado das primeiras igrejas, e, durante séculos, garantindo tudo o que se parecia, aqui, com um projeto educativo. Historiadores como Fernando de Azevedo chegam a sustentar que, sem essa extraordinária rede imaterial construída pelos jesuítas, o país não teria concretizado o milagre de unidade em que ele se tornou.
O catolicismo, no Brasil, era tão forte que acabou caindo num certo conformismo. O padre fazia parte da ordem social - tanto quanto o juiz, o delegado e o farmacêutico. Daí que tivemos casos infindáveis de padres burocratas, acomodados, fazendo seus filhinhos ao abrigo de uma certa hipocrisia social.
Mas por baixo desse eventual marasmo havia algo que estava vivo, e continua vivo: a piedade popular. Este é um tema crucial na vida do papa Francisco.
Jorge Mario Bergoglio sempre foi bem sucedido, na Companhia de Jesus onde ingressou ainda jovem. Aos 37 anos, já era mestre de noviços no seminário de são Miguel. No mesmo ano, foi eleito superior provincial dos jesuítas na Argentina. Mas sete anos depois, em 1980, ele voltava a são Miguel para ensinar numa escola dos jesuítas.
Já se disse que esse é um período de ostracismo para ele. O que aconteceu? Era o pós Vaticano II, e tudo se discutia, inclusive o perfil da Companhia. Tradicionalmente voltada para a formação de elites intelectuais, ela queria agora dedicar-se aos pobres. Como exercer esse projeto, entretanto, era matéria de enormes divergências. E assim começou o “desterro” de Bergoglio.
Diz o excelente livro de Evangelina Himitian, “A vida de Francisco”: “Naquele tempo, cessaram os anos de viver rodeado de seminaristas, sacerdotes e homens de fé. Começavam os anos de pastor. Naqueles dias, o contato direto com o povo se transformou na chave da sua vida de padre”. Diz um testemunho daquela época: “Sem saber, Bergoglio era levado a um nível mais profundo de espiritualidade que, nos anos seguintes, reforçaria a sua liderança. Enquanto todos ao redor consideravam que o padre expiava suas culpas, na verdade ele estava fazendo um mestrado como pastor de almas”. Disse o próprio Bergoglio: “Um pastor, para mim, é isso: alguém que vai ao encontro do povo”.
Isso o ajudou a elaborar a desafiadora questão de uma igreja “para os pobres”. O tema tinha emergido com toda a força na renovação trazida pelo concilio Vaticano II. Mas o que era esse mergulho no pobre?
Para tudo havia teorias. A “opção preferencial pelos pobres” proclamada pelo Vaticano era a própria matéria dos teólogos da Libertação. Mas em algumas dessas propostas era forte a influência do marxismo. Com o que não concordava Bergoglio. Ele dizia: “Não se deve entender o pobre a partir de uma hermenêutica marxista: é preciso conhecê-lo a partir de uma hermenêutica extraída do próprio povo”.
E assim ele se aproximou de um conceito que mudaria a sua vida: o da piedade popular. Para ele, o perigo de uma teologia “ideologizada” vai desaparecendo à medida que cresce a consciência do que é, de fato, a piedade popular.
É uma convicção que ele desenvolveu ao longo dos anos, e que corresponde a uma tomada de consciência da própria Igreja. Me lembro de Dom Claudio Hummes chegando a Roma para o conclave que elegeu Bento XVI. Interrogado sobre o assunto, ele respondeu: “Teologia da Libertação? Tudo bem; mas sem confusão com o marxismo”.
O Globo, 28/7/2013