O imprevisível avanço, na última década, da "guerra de religiões" só se acelera, hoje, com a debilidade do implante da democracia, entendida como o marco definitivo da modernidade. De saída, pela perplexidade do impasse da Primavera Árabe, marcada pelo retrocesso democrático, após a queda das ditaduras na Tunísia, no Egito e na Líbia. O afastamento de Mursi inquieta, exatamente, pela quebra das regras do jogo, no golpe literal infringido à primeira presidência constitucional do país. O que estaria em causa seria o limite dentro do qual a garantia das maiorias eleitorais seria empolgada por uma dominante religiosa, tal como evidenciada pela Fraternidade Muçulmana. É nesse mesmo limite que a Primavera Árabe ressente-se da força da contradição interior na sua identidade, e do advento possível de um Estado religioso e muçulmano como o seu resultado. Retoma-se, no pressuposto da vigência democrática, o mesmo confronto da volta da sharia iraniana, na repulsa mais funda do implante, já multissecular, da dominação ocidental em toda a região. Da mesma forma, o novo levante de facções budistas em Mianmar extrema essa nova "guerra de religiões", no empenho de eliminar completamente, senão reduzir, os direitos das franjas islâmicas desse país ganho à independência, após o Raj britânico.
Claudica, também, nessa emergência, e em função do mesmo conflito-matriz de identidades, a busca do diálogo-limite, em que o status internacional do reconhecimento de diferenças pudesse, de vez, aflorar no século emergente. Inquieta o quanto os Estados Unidos, a base, exatamente, das alianças estratégicas frente a uma eventual e futura ascendência chinesa, viola as suas normas de assistência - que inibem o auxílio a qualquer golpe de Estado -, mantendo as dotações ao governo pós-Mursi, no Cairo. A regressão é a mesma que deslegitima o auxílio à rebeldia anti-Assad na Síria, a ser ainda a garantia - não obstante a sua corrupção - da coexistência religiosa no país, ameaçado por uma síndrome igual à da Fraternidade, no Cairo.
Não se descarte, por outro lado, o quanto, no efeito maior do 11 de setembro, o novo enraizamento político na identidade religiosa pode ameaçar, inclusive, a potência global remanescente, qual os Estados Unidos. Contrapõe-se ao governo Obama um republicanismo cada vez mais religioso e fundamentalista, a empunhar uma política de embargo a toda imigração muçulmana, senão, já, da sua remoção territorial. Recrudescem, ao mesmo tempo, as manifestações do Partido Republicano contra os chicanos. E haveria de perquirir se, dentro desse fechamento, o partido oposicionista, contra todos os foun-ding fathers, acalentaria uma pretensão étnica, associando o futuro do país aos "white, anglo-sa-xon, and protestants", enterrada desde o advento da democracia rooseveltiana. Encarnando essa nova tendência da reconstrução de etnias, deparamos a iniciativa de Israel de reeducar para o judaísmo e de trazer às suas fronteiras etíopes descartados em seu território, a mostrar o passivo de governos que não vão às raízes da vida coletiva e assumem a completa marginalidade de setores reconhecíveis de sua população.
O teste definitivo dessa regressão passa, por força, pelo pós-golpe no Egito. Já desponta inquietantemente a estratégia dos plebiscitos imediatos, legitimando a mudança das "regras do jogo" político, em favor de novas aristocracias do voto, contra o peso real de maiorias que vençam nas urnas.
Jornal do Commercio (RJ), 25/7/2013