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'Hannah Arendt', o filme de Von Trotta

 

Fui assistir ao filme sobre Hannah Arendt, da diretora Margarethe von Trotta, com a sempre presente dedicação de estudioso da obra da grande pensadora e com a curiosidade de ver, como antigo aluno, como ela foi, ao mesmo tempo, representada e apresentada.

A atriz Barbara Sukova, que faz o papel principal, estudou gestos e posturas de Arendt para vivê-la, embora não se pareça fisicamente com ela. Para quem foi aluno de Arendt e a conheceu em 1965, na Universidade Cornell, ninguém é capaz de encarná-la na plenitude da sua iluminadora presença. Feita essa ressalva, avalio que Sukova construiu, com propriedade, uma figura verossímil.

O roteiro do filme é de Von Trotta e de Pam Katz. A ideia inicial era fazer um filme sobre todo o percurso da vida de Arendt (1906-1975), que, como a de tantos da sua geração nascidos na Europa, teve de lidar com as vicissitudes existenciais de uma era de extremos e com o desenraizamento desencadeado pela ilimitada prepotência dos regimes totalitários - no seu caso, o do nazismo antissemita, que a expeliu de seu mundo de juventude e de formação universitária na Alemanha, onde foi aluna de Heidegger e Jaspers.

Essa experiência a instigou a elaborar densa obra, reconhecida como de inequívoca relevância para o entendimento das múltiplas facetas da modernidade. Desde o livro inaugural de 1951, As Origens do Totalitarismo, até os póstumos, como A Vida do Espírito (1977-1978), tem a característica de obra clássica que, pela qualidade e originalidade da reflexão, nunca termina de dizer aquilo que tem para dizer, para evocar uma das definições de Italo Calvino sobre o que é um clássico.

Foi justamente a dificuldade de condensar num filme uma vida na qual o desenrolar do pensamento tem importância constitutiva que levou Von Trotta a mudar o plano original. Optou por fazer um recorte e escolheu um período da vida de Arendt caracterizado pelas confrontações suscitadas por seu livro Eichmann em Jerusalém - um relato sobre a banalidade do mal (1963-1965). No seu entender, a confrontação prestava-se a dar foco, permitindo traduzir em linguagem cinematográfica quem foi Arendt.

O polêmico livro tem sua origem nos artigos para a revista The New Yorker, para a qual, por sua iniciativa, Arendt cobriu o processo de Adolf Eichmann. A sua motivação foi ver e avaliar, em carne e osso, um executor do Holocausto, pois não tivera a oportunidade de assistir aos julgamentos do Tribunal de Nuremberg.

Eichmann foi um dos mais notórios responsáveis pela gestão da "solução final", voltada para o extermínio dos judeus. Após a 2.ª Guerra Mundial, tinha se escondido na Argentina, onde foi capturado por agentes israelenses e levado para Israel, para ser julgado. O filme, com muita pertinência para o entendimento da questão e da análise de Arendt, insere várias cenas do julgamento.

Na construção do enredo, Von Trotta põe em cena, entre outros, o marido de Hannah Arendt, Heinrich Blücher; o seu amigo, em Israel, o esclarecido sionista Kurt Blumenfeld; e seu colega e amigo dos bancos universitários na Alemanha, o pensador Hans Jonas. Heidegger, em flashback, aparece apropriadamente em surdina. Todos são verossímeis à luz da correspondência publicada de Arendt. A escritora Mary McCarthy, sua fiel amiga, que ficou pública e destemidamente ao seu lado nos difíceis embates do período, não é, no meu entender, tratada com o peso que merece. Senti falta da presença de Jaspers, o mestre querido de Arendt, um dos seus mais importantes interlocutores sobre o caso Eichmann, como mostra a publicada correspondência que trocaram.

O filme compreende, é simpático e de algum modo endossa as posições de Arendt na polêmica sobre os três grandes itens que o seu livro suscitou e o filme reaviva. Em síntese: 1) o tom com que discutiu o papel de alguns conselhos da comunidade judaica na Europa que, na situação-limite de uma dominação totalitária, facilitaram a entrega de judeus a nazistas, preservando uns e condenando outros; 2) a enormidade do crime do Holocausto, que tornou supérfluos e descartáveis milhões de seres humanos, e a mediocridade do personagem incumbido da gestão da execução (daí, por conta da sua avaliação da pessoa de Eichmann, a expressão por ela cunhada de "banalidade do mal"; com isso quer dizer que o mal não foi profundo, mas extremo, porém tem um potencial de se espraiar pelo mundo como um fungo, destruindo-o, em decorrência da "normalidade burocrática" de gente como Eichmann, incapaz de pensar o mal da enormidade dos horrores que perpetra); 3) o ineditismo do crime de genocídio, que não foi um pogrom em larga escala e, como tal, uma continuação da imemorial perseguição aos judeus no correr da História, na visão do promotor. O genocídio foi perpetrado no corpo do povo judeu e o antissemitismo explica a escolha das vítimas, mas não a natureza do crime, que representou uma contestação à diversidade e à pluralidade da condição humana. Daí a fundamentação ontológica do alcance universal que elaborou para o jus cogens da razão de punir o crime de genocídio como um agravado crime contra a humanidade, tipificado na Convenção Internacional de 1948.

A compreensão pela posição de Arendt revela-se na cena em que explica a seus estudantes o porquê das suas razões. Sua fala no filme mostra o domínio que tem Von Trotta do seu pensamento. Mostra, também, como era bom e respeitoso o seu relacionamento com os alunos, que nada tinha que ver com a arrogância intelectual e a falta de tato de que foi acusada por seus detratores. Da qualidade pessoal desse relacionamento dou testemunho de quem teve o privilégio de ouvir de viva voz os seus socráticos ensinamentos.

O Estado de S. Paulo, 21/7/2013