O título do filme dinamarquês A caça, do diretor Thomas Vinterberg, pode suscitar duas linhas de raciocínio: a caça aos cervos, comum nas áreas rurais daquela região, ou a verdadeira caçada humana levada a cabo contra o professor Lucas, de uma escola infantil, injustamente acusado da prática de pedofilia. A interpretação fica com os espectadores do filme premiado.
O caso lembra, no Brasil, o que ocorreu na Escola Base de São Paulo, em que os diretores foram sumariamente condenados, sobretudo pela opinião pública, para depois a Justiça decretar que eles eram inocentes. O estrago estava feito e a escola foi obrigada a fechar as portas. Era uma mistura de fantasias, em que entrava em cena também a pedofilia, na época nem tão falada como hoje. Sempre se pode observar que as escolas são presa fácil desse tipo de boato, independentemente de estarem situadas no Brasil, na Dinamarca ou na África do Sul. A nossa sociedade está muito atenta a esse tipo de problema, o que não impede que se registre lamentável aumento da sua incidência. Na nossa opinião, pela falta de uma atenção maior dos pais ou pela existência de lares desestruturados, que dão margem a esses desequilíbrios.
Estabelece-se na película uma paranóia sexual, a partir de confusa acusação de Klara, uma lourinha de seis anos de idade, que tem estranha fixação pela figura do professor e se sente rejeitada por ele. Sendo vizinhos, de pais amigos, ela costumava pegar carona do mestre, na caminhada matinal até a escola. Ainda por cima, tinha enorme atração por Fanny, uma doce e peluda cadela, que vivia confortavelmente na casa de Lucas.
Do tipo simpático e afável, o professor era recebido diariamente na escola com sustos e brincadeiras por parte das crianças, que demonstravam grande estima por ele. Tudo caminhava bem, na placidez daquela pequena comunidade, quando a diretora da escola, notoriamente incompetente, desconfia de que Klara tem importante segredo guardado: ela entrevista a menina e, sem muitos cuidados, a leva a confessar que o professor tinha mostrado suas partes íntimas para a garota.
Insegura, a diretora recorre a outro incompetente, um assistente social, que, numa entrevista de cinco minutos, conclui direto que a menina não mentia. A diretora convoca uma reunião de pais e professores e confessa o exercício de pedofilia. Não resta outra alternativa senão demitir o professor. Em seguida, como é natural, ele é execrado por colegas e amigos, entre os quais os pais de Klara. Todos reagem contra o que seria uma barbaridade, inusitada naquela localidade. Lucas tenta levar a vida em casa, mas a acusação produz efeitos atômicos: vai fazer compras no supermercado e é proibido de estar ali. Briga com um dos funcionários.
Divorciado, consegue atrair o filho para a sua companhia. Vai o garoto às compras e também é proibido pelo dono da loja. Havia um nítido esquema de sufocar o alegado “criminoso”, totalmente inocente. Klara se desdiz, afirmando aos pais que inventara “umas besteiras”. Não adianta nada. Ele é preso e levado para a cadeia. O único que o defende, ardorosamente, é o filho valente, que dá enorme demonstração de amor. Briga pela inocência do pai.
O caso se generaliza e outras crianças também acusam Lucas, alegando que tudo se passava no porão da sua casa. A Justiça liberou o acusado. Na casa dele não tinha porão. Além disso, em casos comprovados de pedofilia, assinalam-se nas vítimas diversos desvios de comportamento, o que não ocorreu. Tudo era fruto da imaginação infantil. Um excelente filme, de toda forma um libelo contra a pedofilia real ou imaginária.
Cabe ainda um último comentário: por que o professor se manteve sempre na defensiva? Na verdade, só uma vez, no supermercado, deu uma cabeçada no vendedor que o inibia nas compras. De resto, vai sendo aos poucos desconstruído, sem demonstrar a revolta que dele se esperava. Questão de temperamento ou covardia? É mais uma dúvida que fica para a discussão entre os espectadores do filme, premiado no Festival de Cannes.
Correio Braziliense, 8/6/2013