A prolifera produção teológica do velho Papa
Em termos de Igreja, todas as luzes estão focadas no Papa Francisco — que nem precisaria delas, tendo gerador próprio. Enquanto isso, sem alarde, Bento XVI voltou ao Vaticano, onde passa a morar no convento Mater Ecclesiae.
O que ele estará fazendo? Será que o piano (seu velho companheiro) foi junto? Imagino a sóbria alegria que ele deve estar sentindo vendo as evoluções do Papa Francisco, consequência direta, ou indireta, da sua sapientíssima renúncia.
Imenso teólogo que ele é, continuará a escrever? É possível que sim, porque, quando da renúncia, só o corpo parecia mesmo usado até o fim.
Mas, se não quiser, também não precisa. O que ele escreveu já o coloca na linha de frente dos teólogos modernos, ao lado de um Rahner ou de um von Balthasar.
As editoras agora fazem uma festa com as famosas homílias das quartas-feiras. Uma por semana, em oito anos de pontificado, faça as contas. E que leveza de toque!
Uma série brilhante é a que ele dedicou aos grandes mestres da história da Igreja. Lá estão todos eles, um por um, tratados com carinho. O formidável Atanásio, que enfrentou os arianos no Concilio de Niceia; os magníficos Padres da Capadócia — São Basílio, São Gregório de Nissa, o outro Gregório. Agostinho e São Tomás, claro, pedem mais espaço que os outros. Mas também está lá Santo Antônio, que sabia muito mais coisas que os segredos dos namorados; e a grande Teresa de Ávila; mas também a Teresinha de Lisieux, "doutora da Igreja" porque veio nos ensinar o que depois se chamou de "pequena via" — o caminho da simplicidade.
Vendo os livros que saem, uns depois dos outros, nos perguntamos como Bento XVI ainda achou tempo para ser Papa. E entre os livros está a majestosa trilogia "Jesus de Nazareth" compêndio totalmente up to date sobre o fundador do cristianismo.
Bento XVI é, certamente, teólogo nato. Nunca deixaria de escrever. Mas por que, numa vida tão acidentada, ele quis produzir o que é quase uma nova versão da "Summa Theologica"?
Bento tem a sensação do "fim dos tempos". Não que ele ache que o
Cristo vai voltar amanhã (nunca se sabe). Mas ele sente a nossa época como uma virada que pode levar a qualquer coisa. E para esse contexto "antidiluviano" ele preparou a sua grande síntese, essa visita comovida às figuras exponenciais do catolicismo.
Para mostrar o quê? Que o mistério católico é a "casa comum" onde há espaço para todos, e onde ninguém é dono da verdade. Cada um dos Padres da Igreja é uma realidade magnífica, uma verdadeira luz. Mas a teologia não é "deles"; não é propriedade de um Agostinho, de um Santo Ambrósio, nem mesmo de um São Francisco.
É essa "casa comum" que atravessa os séculos, sacudida pelas tempestades, pelas fraquezas humanas, mas sempre capaz de se reencontrar no que Bernanos chamava de "a doce misericórdia de Deus".
O Globo, 4/6/2013