Entre as doenças mais modernas que um catálogo cada vez maior põe à nossa disposição, está, como aprendi faz poucos anos e até a mencionei aqui, a ortorexia. A palavra ainda não foi dicionarizada, mas a experiência sopra que alguma multinacional farmacêutica já está desenvolvendo um medicamento poderoso para combater o novo mal e ser vendido com tarja preta, ao custo de uns quatrocentos contos a cartelinha. Em breve, teremos o anúncio dessa descoberta nos noticiários de tevê e nas páginas de saúde dos jornais e assistiremos a tocantes depoimentos de doentes, notadamente os que conseguiram recuperar-se a tempo de refazer suas vidas destroçadas.
A ortorexia é a preocupação mórbida e obsessiva com o que a vítima come. Isso se dá em relação ao tipo de comida, seu preparo, sua origem, sua quantidade e, enfim, tudo o que tenha a ver com a alimentação. Em casos extremos, o padecente não faz mais nada na vida, além de procurar informações sobre alimentos na internet, retirar-se do recinto caso alguém coma açúcar em sua presença, ir a quitandas remotas para comprar produtos naturais e conferir o relógio o tempo todo, para ver se não está na hora de cumprir algum dever alimentar, em cujo rol também se inclui beber água com o PH adequado de tantas em tantas horas, até se atingir o mínimo de oito copos diários.
Mas a vida é difícil, mesmo para quem observa tantas precauções quanto ao que ingere. Há muito não sabemos produzir nossos próprios alimentos e certamente há crianças urbanas que pensam que galinha é uma coisa de comer que se compra no supermercado e não sabem direito que se trata do cadáver de um animal que já cacarejou e se mexeu. E porque desconhecemos como cultivar plantas, pastorear, caçar ou até cozinhar, somos forçados a depender de uma cadeia intrincadíssima de produtores e fornecedores — e aí é que o bicho pega, razão pela qual toda hora tomamos um susto.
Comer carne de cavalo é bobagem. Como nutrição, a carne de cavalo é comparável à de outros animais. O problema é que os cavalos transformados em hambúrgueres não foram criados para corte e tomaram remédios e vacinas — perdão — cavalares e sua carne assim contaminada pode fazer mal a quem a ingere. Além disso, o indivíduo (ou indivídua; de vez em quando, como vocês sabem, procuro seguir as normas gramaticais da República, embora lembre que, mesmo no Império Romano, Cæsar non supra grammaticos, o césar não (estava) acima dos gramáticos, isto é só no Brasil) pode recusar-se a comer carne de cavalo, de cachorro, de gato, de rato, ou do que considere inaceitável. Enfim, todos deviam ter o direito de saber o que estão comendo.
Deviam, mas não têm. Se no momento estamos comendo carne de cavalo, não sei, nem há como ter plena certeza. Em feiras pelo Brasil afora, vende-se charque de carne de jegue, ainda mais agora, quando os jegues estão sendo ingratamente esquecidos e substituídos por motos. Quase todo dia, lemos nos jornais sobre fabricantes que roubam no peso, mentem ou iludem nos rótulos, fazem misturas indevidas na massa do pão e perpetram todo tipo de tramoia. Uma dessas, que não chega a ser tramoia, mas é suspeita, é o uso de transgênicos. Em toda parte do mundo, olham atravessado para eles, mas aqui eles são usados, sua presença denunciada apenas por um timbrezinho discretíssimo.
Os transgênicos, contudo, não são nada diante da grossura bestial do que se pratica aqui. Há umas duas ou três semanas, noticiou-se o caso do leite adulterado. Praticamente, misturava-se veneno a leite vendido em supermercados como fresco, sadio e fiscalizado. O negócio era tão conscientemente nocivo que um dos responsáveis pelo trambique criminoso mandava que, antes de envenenarem o leite, separassem o destinado ao consumo de sua família. Ou seja, quem comprou leite dessa origem e o vem consumindo sabe-se lá há quanto tempo se intoxicou e talvez adoeça e tudo vai ficar por isso mesmo.
Vai ficar por isso mesmo porque aqui tudo fica por isso mesmo e, neste instante, estou ouvindo um comentarista informar que cabe recurso da sentença que rejeitou recurso contra a sentença definitiva condenatória de um dos réus do mensalão. Salta aos olhos a premência da criação do Supremíssimo Tribunal de Recursos, cujo brasão ostentaria o singelo dístico — perdoem o latim outra vez, isto passa — Ad Infinitum e cuja missão seria julgar as doze novas instâncias de recursos a serem instituídas na nossa estrutura processual, bem como da Comissão Nacional de Recursos, encarregada de judiciar os recursos impetrados contra decisões definitivas do Supremíssimo.
Pode-se, portanto, botar veneno dolosamente no leite e vendê-lo, que nada acontecerá, até porque caberá recurso contra tudo o que ocorrer na trajetória judicial do problema. Problema, aliás, nenhum. Problema é o de quem bebeu o leite, pois, afinal, desde os romanos que se recomenda — juro que é a última vez, é um vírus passageiro — caveat emptor, que se precate o comprador. E ninguém é mais culpado de nada, isso está inteiramente fora de moda. A culpa é sempre exógena. O delinquente individual é vítima da sociedade, de uma situação econômica iníqua, de negligência familiar, falta de educação, bullying e de mais o que se insinue à imaginação. Portanto, os verdadeiros criminosos são as vítimas e os atos criminosos não passam de consequência de nossa ação ou inação. Coletivamente, também ninguém é responsável por nada. Quando a empresa pública comete um erro e é multada, quem paga a multa não são os responsáveis, somos nós. Quando é privada, quem paga são os acionistas. O envenenamento é livre, quem não confiar que mantenha um laboratório bioquímico em casa. Ou coma insetos, como sugere a FAO, nenhuma grande novidade. Mosca, por exemplo, nós já comemos há muito tempo.
O Globo, 19/5/2013