Por diversas vezes tentei me aproximar de Paulo Vanzolini, mas por timidez ou preguiça, fui ficando no meu canto.
Com a sua morte, assumi uma dívida, pois devo a ele o título do livro que considero o mais pessoal de todos os romances que escrevi por aí. Nem sempre é fácil dar um nome a um romance, mas "Pilatos" veio naturalmente, como epígrafe e título do único livro que escrevi por e com prazer.
Chico Buarque gravara o "Samba Erudito", de Vanzolini conhecia o clássico "Ronda", mas senti nos versos finais do erudito samba não apenas o nome, mas a própria história do romance: "E assim, me rendi ante a força dos fatos, lavei minhas mãos como Pôncio Pilatos".
Depois de publicá-lo, fiquei 23 anos sem fazer ficção, pois achava que a força dos fatos me obrigara não apenas a lavar as mãos, mas a jogar fora a água da bacia. Antes, havia escolhido epígrafes solenes, Goethe, Verlaine, Ingmar Bergman, são Paulo, Apollinaire, mas, quando cheguei a Vanzolini, nunca mais usei epígrafes.
Até hoje, leitores e críticos estranham o nome "Pilatos" que só aparece na capa e na epígrafe. Nada tem a ver com a trama, mas comigo.
A história é de um sujeito comum, atropelado por um ônibus, no hospital cortam-lhe o pênis. Impotente e castrado, ele coloca o pênis num vidro de compota de pêssego da confeitaria Colombo, com álcool que renovava sempre. Segue a vida dele, enfrentando a força dos fatos da maneira que pode.
O livro foi escrito durante os anos de chumbo, não deixa de ser uma metáfora do brasileiro castrado e impotente daquela época. Ante a força dos fatos, lavei minhas mãos e fiquei devendo a Paulo Vanzolini o único livro que considero realmente meu. Lavei minhas mãos, mesmo assim não as considero limpas.
Folha de S. Paulo (RJ), 30/4/2013