Antigamente, na faculdade de Direito, pelo menos na Bahia, a gente encarava Direito Romano logo no primeiro ano. No vestibular entrava latim, que já tinha sido ministrado durante todo o então curso secundário. Mas a maior parte do pessoal não aprendia a língua, propriamente. O comum era decorar às vezes traduções inteiras, em edições bilíngues das Catilinárias, da Eneida e de De Bello Gallico. Quando chegávamos ao Direito Romano, a decoreba se estendia a brocardos e máximas jurídicas, que a gente salpicava nas provas para impressionar o professor e declamava nos concursos de oratória que todo ano eram realizados, com torcida e grande empolgação. E, claro, gastávamos farto latinório nos corredores da faculdade e para impressionar terceiros, pois onde já se viu bacharel baiano que volta e meia não solte um latinzinho, se bem que, hoje em dia, o que me contam é que a maior parte dos bacharéis se forma sem saber se expressar nem em português, quanto mais latim. Deve ser maledicência e, de qualquer forma, não vem ao caso.
Mas não foi nas aulas de Direito Romano que pela primeira vez prestei atenção no cui prodest e no cui bono, perguntas de sentido idêntico, feitas quando se busca saber quem se beneficia de determinada situação — a quem aproveita, quem ganha? Foi um pouco depois, quando começamos a estudar Direito e Processo Penal e nos apresentaram casos e julgamentos de crimes misteriosos ou controvertidos. Um bom advogado ou promotor, ao ser confrontado com um desses crimes, ou mesmo qualquer crime, inclusive os aparentemente elucidados, devia deter-se algum tempo nessa indagação, que constituiria quase uma postura metodológica básica. “Cui prodest scelus, is fecit” era a frase de Sêneca que citávamos judiciosamente. Mais ou menos “aquele a quem o crime aproveita foi quem o cometeu”.Parece bastante simples e até intuitivo, condição que ninguém precisaria estudar para inferir. Mas, como sabemos, esta vida é cheia de surpresas e foi assim que, diante de uma notícia que vi num noticiário de televisão, me ocorreu que a perguntinha não é feita tão frequentemente quanto se suporia.
Ou então não é feita de jeito nenhum. A matéria era sobre o roubo de uma carga de cigarros no Rio de Janeiro, se não me engano na Avenida Brasil, em que houve até tiroteio e morreu gente. Mais bandidos, pensamos diante da tevê. É, mais bandidos, mais assaltantes, ladrões e assassinos, polícia neles.
Certo, mas onde fica a perguntinha? Acho que os ladrões de cigarros, se tivessem conseguido levar o caminhão, não iam montar uma barraquinha na Rua Uruguaiana, ou sair oferecendo pacotes de cigarros de casa em casa, a preços de ocasião. Ou seja, os ladrões obviamente ganham com um roubo bem-sucedido, mas quem ganha são apenas eles? Claro que não, pois, como acontece em outros ramos do comércio, quem deve lucrar bem mais não é o “produtor”, mas o atravessador. Alguma empresa ou organização capaz de vender os cigarros “legalmente” está, com certeza, por trás de todos os roubos de cigarros. Não existe loja ou boteco que anuncie cigarros roubados, logo parte do que se compra e vende na praça como legítimo é roubada. E ninguém estoca cigarros para investir.
Todos os outros roubos de mercadorias também têm que ser vistos nessa ótica. Roubaram uma carreta cheia de máquinas de lavar. Novamente se pergunta: os ladrões vão sair de casa em casa, oferecendo máquinas de lavar? Ou computadores, ou televisores, ou liquidificadores? Vão vendê-los na feira? Não vão. Esses aparelhos estarão expostos nas vitrines de alguma loja ou cadeia de lojas, para serem vendidos livremente, quem sabe se em alguma promoção sensacional, sem juros e com o primeiro pagamento depois do carnaval do próximo ano. Evidentemente que não estou acusando nenhuma loja ou cadeia em especial, mas não vejo como as coisas podem deixar de ser assim.
A velha pergunta, portanto, não é feita. E, como perguntar não ofende, por que as investigações, que eu saiba, nunca descobriram essas e outras lojas, das quais deve haver alguns milhares pelo Brasil afora, ou em países com que temos fronteiras? De novo, não posso fazer acusações, mas somente levantar suspeitas perfeitamente lógicas. A quem aproveita não haver investigações? Em primeiro lugar às lojas, mas, logo em seguida, a quem não faz as perguntas, as autoridades que deveriam buscar e flagrar as mercadorias receptadas. Se não buscam nem flagram, é justo desconfiar que algumas mãozonas estão sendo molhadas nesse processo todo, talvez até agentes municipais, estaduais e federais, numa esplêndida operação federativa, que só faz dizer bem da criatividade e da capacidade de trabalhar em conjunto do brasileiro, além da solidez de nossas instituições delinquentes.
Há exemplos ainda mais interessantes, como o caso dos remédios. Até imagino algum ladrão de carga vendendo um laptop na feira de Caruaru, mas remédio, inclusive de tarja preta, é bem mais difícil. Creio que nenhum de vocês deixa de tomar conhecimento, periodicamente, do roubo de um caminhão enorme, carregado de remédios. Que é que fazem com tanto remédio? Como ganham dinheiro com isso? Quanta gente, de farmácias a farmacêuticos ou outros profissionais de saúde, está envolvida nesses roubos? Como é que se desova, sem problemas com a lei, esse material todo? Quem está implicado em todos os processos postos em ação por esses e muitos outros crimes? Enfim, cui prodest? Perguntinha chata, assim como é chata a afirmação de Sêneca. E o pior é que, se a fizermos em relação a alguns dos grandes males brasileiros, as respostas poderão ser até mais inquietantes, porque alguém está sendo beneficiado por eles — e não somos nós.
O Globo, 28/4/2013