Hoje, cativante leitora, airoso leitor, é o Dia Mundial da Saúde. Eu não sabia, descobri enquanto estava na cozinha, esperando a água do café esquentar e, por falta do que fazer, lendo uma folhinha de padaria pendurada atrás da porta. Imagino que, pelo País afora, devem estar sendo realizados inúmeros eventos oficiais para dar serventia à data, conforme é costumeiro em nossa diligente administração pública. Tomada da pressão arterial na pracinha, fornecimento gratuito de camisinhas à juventude, palestras sobre alimentação sadia e exercícios físicos, caminhadas coletivas em parques públicos, farta distribuição de escovas de dente e lenços de papel e o que mais ocorrer à renomada criatividade nacional, principalmente se render uma propagandazinha comercial, uns votinhos ou um desviozinho de verba maneiro.
Não me informei sobre se certas iniciativas de natureza sanitária, algumas envoltas em controvérsias acaloradas, foram ou serão retomadas este ano. Falha minha, porque bem que eu podia ter dado uns telefonemas investigativos para Itaparica, onde pelo menos dois exemplos são notórios. O primeiro é a questão da vacinação para idosos.
Oculta-se entre segredos e cochichos a origem da postura hoje majoritária na ilha, segundo a qual o terceiro-idadista de juízo não toma essa vacina oficial nem que lhe confisquem a dentadura ou acabem de destroncar-lhe o joelho reumático, visto tratar-se tal vacinação de escabrosíssimo plano governamental para eliminar os aposentados e assim aliviar as contas da Previdência e sobrar mais para quem está no poder e precisa se fazer. Há quem sustente que os velhos assim inoculados começam logo a padecer de abestalhamento galopante e, nos meses seguintes, perecem aos magotes, entre risadas dementes, babação caudalosa, tremeliques, caganeiras, águas soltas, ventos soltos e outras aflições deploráveis.
Tenho uma certa justificativa para não haver telefonado para me inteirar da situação desse problema no momento. Não apenas creio que ela pouco terá mudado, como ninguém quer complicações com o governo, de maneira que as perguntas sobre o assunto causam algum constrangimento, que achei melhor evitar. Mais ou menos o mesmo pode ser dito do segundo problema, qual seja o do sempre debatido exame da dedada. As lembranças do último exame coletivo da dedada, em Itaparica, até hoje fazem parte de cicatrizes traumáticas, ou mesmo feridas da alma que talvez jamais se curem. Acho que, na ocasião, tive a oportunidade de reportar aqui os dramas vividos pelos que se enfileiraram para o exame, notadamente Magno do Siri-boia, a quem o destino traiçoeiro reservou um digitador de fiofó, como são lá conhecidos os profissionais da dedada, dos mais temidos em todo o Recôncavo, com um dedo futucador de dimensões comparáveis às de um salame. Até hoje, Magno empalidece e dá a impressão de que pode correr a qualquer momento, quando lhe lembram o doloroso transe. É, como se vê, um tema muito malvisto na ilha e não vale a pena mexer em sentimentos tão doridos.
Zecamunista até que apareceu com a conversa de que a Organização Mundial da Saúde havia declarado desaconselhável o exame periódico da dedada, a não ser para quem está com os baixios mostrando sintomas ou se comportando de maneira inconveniente. E, digam dele o que disserem - de raposa do carteado a flagelo dos maridos, de subversivo insidioso a agitador de massas inocentes -, ninguém nega que Zeca é homem de grande conhecimento e elevada estatura intelectual, dificilmente derrotável em qualquer debate. Mas a reputação de demolidor da ordem leva a que suas ponderações sejam ouvidas com alguma cautela, de forma que Toinho Sabacu, homem austero em cujo testemunho todos confiam, foi encarregado de ouvir um respeitado urologista em Salvador.
- Infelizmente você não tem razão - disse Sabacu a Zeca, depois de cumprida a missão, sob grande interesse dos circunstantes. - Perguntei a um grande urologista na Bahia e ele garantiu que o exame anual de toque é indispensável para todo homem depois dos cinquentinha. Tem que tomar a dedada, porque, se não tomar, está sujeito a encarar a catraca antes do que gostaria.
- E pra isso você foi à cidade falar com um urologista? - desdenhou Zeca, girando na cabeça seu novo boné do Exército Vermelho. - Podia ter poupado essa viagem, a resposta dele eu mesmo podia lhe dar. Me compreenda uma coisa, você está me desconhecendo a medicina capitalista? A 500 contos a dedada, era pra ele responder o quê?
- Então você acha que não é para ninguém fazer o exame da dedada.
- Eu não, quem acha é a Organização Mundial da Saúde. Mas sou um defensor da liberdade, faz quem quer, quem gosta ou quem pode. E, além disso, a oportunidade política não pode ser perdida, tem que ter visão política.
- Não percebi.
- Claro que não percebeu, você é um alienado. A dedada, principalmente quando é ministrada pelo SUS e recebe o nome jocoso de carcada, é uma esplêndida metáfora do que os governantes fazem com os governados, acho que qualquer um concorda, você não?
- É, é muito usada.
- E então, a oportunidade política é clara. Vou superar Pavlov, vou criar um reflexo condicionado em todos os homens que tomarem a dedada. Eu vou fazer um panfleto ilustrado, inclusive com versão para smartphone, para ser lido ou visto exatamente na hora da carcada. Acho que o primeiro vai ser sobre os impostos. Sentiu o impacto? A lembrança dos impostos e a carcada impiedosa. Ninguém vai mais aguentar, a revolução fiscal vai começar!
O Globo, 7/4/2013