No último sábado, a "Ilustrada" publicou reportagem –de certa forma, dialogando com minha crônica de domingo– sobre as adaptações de obras-primas, consideradas um insulto literário a autores como Machado de Assis e outros clássicos.
Trata-se de uma prática editorial antiga, basta lembrar que um jovem de fala inglesa toma conhecimento da obra de Shakespeare pelas adaptações feitas por Charles Lamb, em forma de contos, que hoje são considerados clássicos.
Os comunistas em início de carreira leem "O Capital", de Karl Marx, na famosa versão de Carlo Cafiero. E Otto Maria Carpeaux, um austríaco, pela primeira vez leu "A Divina Comédia", de Dante Alighieri, nos tempos em que estudava em Cracóvia (Polônia), numa edição expurgada, "ad usum delphini".
A própria Bíblia, fundamento de duas religiões (judaísmo e cristianismo), com influência numa terceira religião também monoteísta (islamismo) sofreu e continua sofrendo revisões de texto.
Neste particular, o judaísmo é mais autêntico. Na Casa do Livro, em Jerusalém, há uma cópia do livro de Isaías, que corresponde integralmente, sem uma palavra a mais ou a menos, ao texto original do grande profeta que atravessou os séculos.
O mesmo não acontece com a Bíblia cristã que periodicamente, a cada Concílio (para os católicos romanos) muda palavras e frases.
Até mesmo o padre-nosso, única oração que Jesus ensinou a seus discípulos, transformou-se em pai- -nosso. E o "perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores" foi alterado para "perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido".
Um tradutor ou um adaptador de Machado de Assis que substituísse no texto "boceta de rapé" por "bolsa de rapé" estaria traindo o original?
Folha de S. Paulo(RJ), 13/5/2014