Pouco mais de meio-dia, no aclamado boteco Tio Sam, tudo parece estar de acordo com a filosofia do proprietário do estabelecimento, ou seja, a normalidade. O domingo não se apresenta dos mais gloriosos, mas não chove e, a cada trinta segundos, passa uma bela moça ou formosa senhora, a caminho da praia. Às mesas do Tio Sam e do boteco que lhe é vizinho, os coroas de sempre — nenhum dos quais jamais precisou de Viagra ou semelhante, mas sempre tem um amigo que precisa — se postam tão perto quanto possível da calçada, para desfrutar da paisagem e comentar as qualidades organolépticas das desfilantes. Amavelmente cafajestes, denominam isso “apreciar o cânter” — e o cânter aqui desta calçada leblonina nunca decepciona os aficionados.
Nenhuma novidade. Como acontece frequentemente, Dick Primavera começa a dar expediente em seu celular mesmo bem antes de sentar-se. Ele insiste que são clientes de sua próspera empresa de condicionamento de ar, mas, cala-te boca, comentários maledicentes afirmam que se trata da complexa administração de uma agenda de admiradoras invejavelmente abarrotada, onde o overbooking às vezes causa um probleminha. Mas, de resto, pode-se até dizer que se instaura uma certa pasmaceira, quebrada somente por alguma observação revoltada sobre exame de próstata, a inclusão da Rejeição Não Justificada de Paquera como grave infração no Estatuto do Idoso, ou como seria interessante que alguns de nós, seguindo altos exemplos, formássemos uma quadrilha para roubar dinheiro público, assim garantindo a famosa qualidade de vida, durante o ocaso de nossa existência. Mas é da convicção geral que o mercado está saturado, pois abundam quadrilhas e escasseia o que roubar, é grande a concorrência e não tem misericórdia.
A ausência do comandante Borges, sempre arrebatado na postulação de suas convicções, era certamente, como de costume, a grande responsável pela conversa morna e preguiçosa. A maior parte das especulações opinava que, havendo chegado a um estado pré-apoplético no dia anterior, enquanto defendia algumas de suas posições controvertidas, ele resolvera tirar o dia de folga e talvez fazer drenagem de adrenalina. Pena, porque, quando o temperamento iracundo do comandante se manifesta, não há quem não desperte de qualquer leseira. Uma tarde de domingo sem o comandante não é uma tarde completa.
Felizmente essa terminou sendo completa outra vez, porque, quando não mais era esperado, ei-lo que surge, em sua garbosa bicicleta elétrica moderníssima, de boné novo, sorridente e sem exigir forca para ninguém. Pediu um chope e bolinhos de bacalhau para os companheiros de mesa e se acomodou confortavelmente na cadeira. Belo dia, não? Meteorologicamente, podia não ser, mas historicamente era um dia lindo, um dos dias mais lindos de sua vida. Depois de muito matutar havia chegado às pinceladas finais de seu grande projeto para o Brasil, não era possível que a população não o apoiasse num plebiscito, ou coisa assim. Mas este é um problema para depois, o que interessa agora é o plano para nossa sofredora pátria.
Esse plano envolve uma cuidadosa programação de investimentos públicos, centrados na construção em massa de penitenciárias, para alojar todos os que estão fora da cadeia e tinham que estar dentro. Seria o Programa Penitenciário Nacional. Construção de presídios-modelo de primeiro mundo, embora sem firulas, tudo na austeridade de uma boa cadeia. Seriam dezenas ou centenas de vastos complexos, em todo o território nacional. A mão de obra seria basicamente de condenados já presos e do número extraordinário dos que viriam a ser presos. Os trabalhos de construção ficariam de graça, feitos por construtoras e empreiteiras delinquentes, o que não é muito difícil de achar.
— E não será o bolso do contribuinte que vai sustentar os vagabundos na cadeia! — acrescentou ele, já exaltado. — Os ricos ou os que tiverem renda pagarão a hospedagem. Cada um paga o que pode. Os alojamentos são os mesmos para todos, mas cada um paga o que pode, de forma que o ricaço vai pagar a mesma diária da suíte dele em Abu Dabi ou o aluguel do apartamento em Nova York. E o pobre, que não tiver renda nenhuma, paga com o salário que receber de seu trabalho na penitenciária. Todo mundo na penitenciária vai ter que trabalhar, porque quem não trabalhar não come. E a administração do sistema vai para a iniciativa privada, é bom negócio, vai dar bastante lucro.
Com o boom da construção civil e seu efeito multiplicador, o país prosperaria até no embalo. Mas é forçoso reconhecer, acrescentou o comandante, que o Código Penal precisa ser mudado e simplificado. Só haverá pena de cadeia fechada, nada de frescura de serviços comunitários, de sair para Natal e outras colheres de chá. O que varia é o tempo de cadeia, mas qualquer infração rende cadeia. O juiz de plantão julga no mesmo dia e encana o elemento.
— Quanto aos di-menor, a lei vai ser também bem simples — finalizou ele. Para o di-menor com menos de doze anos, vai para a cadeia o pai ou responsável, por um número de anos igual à metade da idade do vagabundinho. Para quem está entre os doze e os dezesseis, cadeia direta nele, por metade dos anos de sua idade. E qualquer reincidente pega pena repetida e assim sucessivamente. Que tal? Amanhã mesmo já começo a colher assinaturas na internet.
— Você vai apresentar isso como o Plano Borges?
— Não, eu detesto aparecer, fico satisfeito só em ter tido a ideia para uma solução perfeita dos nossos problemas. Quer dizer, a verdade é que eu sinto falta de um aspecto. Você não acha que as penitenciárias deviam ter uma forquinha? Ou senão uma guilhotinazinha? Cadeira elétrica eu sou contra por causa do gasto de energia, mas guilhotina vai por gravidade, corta ligeirinho…
O Globo, 24/3/2013