O impacto único da renúncia de Bento XVI não pode ter como resposta uma ambiguidade instintiva de reação, entre o seu entendimento como entrega ao cansaço da idade, ou da coragem de levá-la a uma exaustiva e radical tomada de consciência. O gesto é de uma indiscutível modernidade, inclusive em confronto com o seu antecessor, a manter a crença num providencialismo inato ao pastoreio pontificai, até a sua morte, como fez João Paulo II. É situação-limite e, talvez, sem antecedentes na história dos papados, já que, a que a antecedeu, há 415 anos, com Celestino V não foi a da responsabilidade do dever, mas do bem-estar da alma, a trazer de volta ao monacato o pastor então eleito, praticamente contra a sua vontade. Influiu, sem dúvida, a percepção de Bento XVI da aceleração das crises desta pós-modernidade. Mas muito menos quanto às condutas clericais, do que no concernente às manifestações da Igreja sobre o seu tempo. E aí, significativamente, também, num corte equívoco, no seu testemunho sobre a convivência das fés, e, em especial, quanto ao Islã, frente à iminência das guerras de religiões. De outro lado, entretanto, o pensamento de Ratzinger enfrentaria a intelligentsia emergente, no proclamar a relativização, senão a anulação, em soma algébrica, do avanço da racionalidade frente à crença, em nossos dias.
É numa reflexão aberta sobre a modernidade que enveredou, surpreendentemente, há poucos dias, o Papa, a reconhecer a prioridade dos direitos humanos nas questões, até há pouco, fechadas, do casamento gay, ou da homossexualidade. O intelectual e o filósofo, em Ratzinger, ao lado do teólogo, manteve o alerta da consciência crítica, independentemente do seu dixit final. Deparou o avanço da secularização do Ocidente, nas perdas das maiorias cristãs, na Holanda, ou na Escandinávia, ou mesmo na Inglaterra, ou no catolicismo francês. Este acúmulo da densidade da descrença fecha os caminhos, naturalmente, a um papado inovador, ao mesmo tempo em que invalida-pelas próprias perplexidades da'lgreja destes dias um novo pontificado de transição. A perspectiva, dramatizada pela renúncia, é a de um cerrar fileiras em torno de uma ortodoxia, de pontificado defensivo, ainda que não-restaurador, como ao que se inclinou o então jovem Papa, Pio K, no cerne do século XIX. Uma Igreja conservadora responderia a esse perfil, dificilmente escapável de uma retração sobre os grandes episcopados italianos, à volta de Bento XVI, a partir da super arquidiocese milanesa. E tal, de par com o testemunho do silêncio inédito de Ratzinger, no repto da última entrega pelo extremo de sua lucidez.
Jornal do Commercio (RJ), 15/2/2013