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Tudo dentro da normalidade

 

O comecinho de tarde anunciava mais calor, no famoso boteco leblonino Tio Sam. Ainda mais agora que uma porta do meio, dessas corrediças de ferro, quebrou e resolveu ficar permanentemente fechada, bloqueando a ventilação. Segundo a opinião geral, a situação deverá perdurar mais alguns meses, enquanto Chico, o filosófico português da Beira Alta que é dono do estabelecimento, resolve se vai consertá-la. Chico pauta sua conduta pelo que chama de Filosofia da Normalidade, segundo a qual ele é normal e tudo o que é diferente dele não é normal. Ele não me falou, mas tenho certeza de que está ponderando sobre se é normal querer a reabertura da porta. Além disso, os calorentos contam com os ventiladores da casa, embora se avolumem as queixas de que a aragem deles esquenta o chope nos copos.

— São uns anormais — rebate Chico. — Onde já se viu vento esquentar alguma coisa? O normal é o vento esfriar. O senhor já viu alguém soprar na xícara para esquentar o café? Se fosse assim, eu comprava um fole e economizava gás de cozinha. Mas minha cozinha, infelizmente, é normal.

E dessa forma, porta do meio fechada e ventiladores em ação, se iniciou o que prometia ser uma tarde modorrenta e vagarosa, posta em marcha aos poucos por uma discussão sobre o verdadeiro início do ano. Chegou-se à conclusão de que é necessário rever a antiga ideia de que o ano brasileiro só começa depois do carnaval. A convicção mais moderna é a que situa esse começo pouco depois da Semana Santa. Tanto assim, arguiram os defensores desta tese, que nada de fato está acontecendo depois deste último carnaval, nem parece que vai acontecer. E a única atividade intensa e séria em que a nacionalidade se envolve é o planejamento do feriadão da Semana Santa e a redação de um e-mail padrão, deixando tudo para depois dele.

— Os senhores mesmos me dão razão — disse Chico. — É isso mesmo. Só mando consertar essa porta depois da Semana Santa. Eu não tinha atinado direito, mas é o normal.

O ambiente se ressentia claramente da ausência do comandante Borges, que a essa altura já teria feito alguma denúncia inflamada, mas se animou um pouco diante da lembrança do feriadão. Com essa história de lei seca, manda a prudência antecipar as dificuldades. Geralmente um rapaz afável e sorridente, Dick Primavera, assim alcunhado por capitanear uma empresa de ar-condicionado que garante clima ameno a seus fregueses, levantou a voz para exprimir vibrante indignação. Esses caras em Brasília, ou onde lá seja que eles se escondem, fazem as coisas e não imaginam as consequências, quem quiser que se vire, depois que eles aprontam as besteiras deles.

— Não estou querendo me referir nem ao vinho do padre nem ao do rabino — disse ele. — Já estou até esperando o porta-voz de uma agência do governo aí dizer que, nesse caso, eles que tomem suco de uva, que é a mesma coisa e tem a vantagem de não conter álcool.

Nada de padre ou rabino, que podem apelar para seus pistolões lá em cima, mas o cidadão comum, que muito mal conta com um santo assoberbado por trabalho até o pescoço, entre novenas, despachos e todo tipo de prece e promessa. Imagine-se o jovem ali mesmo do Leblon, que se engraçasse com uma moça de Niterói. Como é que ele iria de lá para cá, sem beber nem um chopinho no sábado à noite? Amor impossível, tragédia de cinema mesmo, porque o namoro não ia suportar uma convivência completamente abstêmia, nem o bolso do cara ia aguentar pagar uma corrida de táxi interurbana toda hora. Quer dizer, discriminação, segregacionismo.

Observou-se que já anunciaram que os futuros bafômetros detectarão o uso de maconha e de cocaína, sem dúvida um grande progresso. Mais adiante, a lei dará um passo à frente e fará detectar também o consumo de tabaco, a essa altura já proibido, a não ser dentro de câmaras individuais com filtros exaustores. Outras substâncias execráveis serão acrescentadas à lista e, finalmente, ninguém poderá tomar controladores do apetite, cheirar rapé, ingerir ansiolíticos, chupar bombons contendo aditivos ou corantes suspeitos, beber chás estimulantes ou calmantes e assim por diante. Claro que vai continuar a ser possível encher a cara, pegar o carro, matar quatro e aleijar onze, pagar fiança, responder em liberdade e ser condenado a seis anos em regime semiaberto, com soltura em dois anos, ou não ser nunca condenado a nada. E beber antes de atropelar é essencial, porque, se o atropelador estiver bêbedo, o homicídio é culposo, dá ainda menos dor de cabeça.

Daí a mais algum tempo, a tarde, já embalada, se completou. Apeando de sua bicicleta elétrica de última geração, o comandante Borges adentrou o recinto. Pena que não tivesse estado presente na hora, para dar sua contribuição ao debate sobre atropeladores, embora se saiba que provavelmente opinasse pela pena de morte para todos os implicados. O comandante tem ideias muito enfáticas e é a favor de tolerância zero para qualquer coisa.

— Vocês estão festejando? — disse ele, antes mesmo de sentar-se. — É o fim da miséria que vocês estão festejando? A miséria acabou! Vamos acrescentar um real à renda de todos os pobres e aí eles mudam de categoria estatística. Quer dizer, o sujeito continua passando fome e bebendo lama, lá no Nordeste, mas aí vai lá o funcionário e mostra a ele a estatística: “Olhe aqui, você não é mais miserável, deu no jornal.” Vocês sabem de que é que este país precisa? É de forca! Forca! Não é nem fuzilamento, é forca neles!

— Isso não é normal — disse Chico. — O normal é forca em nós. É melhor o senhor parar de dizer estas coisas, porque eles podem gostar da ideia.

O Globo, 24/2/2013