Eugênio Hirsch, nascido na Áustria, mas vivido na Argentina e, mais tarde, no Brasil, era um artista gráfico de prestígio mundial, responsável pelos catálogos de alguns dos museus mais importantes da Europa e capista de grandes editoras internacionais.
Era um mestre na arte visual. Sua capa para a edição brasileira de "Lolita", publicada pela antiga Civilização Brasileira, ganhou o prêmio internacional e foi consagrada pelo próprio Nabokov, que a considerou a melhor interpretação de sua personagem, superando até mesmo o filme de Stanley Kubrick baseado em seu romance.
Durante os anos em que viveu no Rio, casou-se com uma negra escultural da qual ele nem sabia o nome, tratando-a simplesmente de Azeitona, pela cor aveludada de sua pele extraordinária.
Um amigo perguntou se era verdade que ele havia se casado com uma negra. Hirsch respondeu na bucha: "Não, eu me casei com uma mulher". Este caso teve um replay de outro amigo meu, que se casou com uma judia. Perguntado se era verdade, ele respondeu: "Não. Casei-me com uma mulher".
Relembro os dois casos toda vez que fazem referência ao ministro Joaquim Barbosa, considerado o primeiro negro a ocupar a presidência do Supremo Tribunal Federal. Pensando bem, é um resquício quase inocente do preconceito racista, negado veementemente pelos nossos sociólogos e demais entendidos, mas existente na prática sob diversas formas, algumas delas até que inocentes.
O ministro é, acima de tudo, um cidadão como outro qualquer, não deve o cargo que ocupa atualmente a uma cota racial, é um brasileiro nascido em Paracatu, que se destacou no ofício que escolheu e para o qual se preparou ao longo da vida, vencendo dificuldades que, de uma forma geral, todos nós enfrentamos, uns mais, outros menos, no desafio clássico do "struggle for life", a luta pela vida.
Se há um povo que não tem necessidade de rotular seus filhos pelas características raciais, esse povo é o brasileiro, formado e formatado pela miscigenação do branco europeu, do negro africano e do índio nativo. Gobineau e Chamberlain abasteceram os nazistas e os demais racistas, condenando a mistura do sangue como o maior inimigo do gênero humano.
No caso brasileiro, apesar da discriminação que ainda existe, embora atenuada em relação a outros tempos (fomos o último país a abolir a escravidão), há motivos de sobra para não nos admirarmos quando um negro ou afrodescendente (detesto essa classificação pretensamente correta) ocupa na sociedade o lugar que mereceu.
Basta citar que três dos nossos maiores artistas foram negros: Aleijadinho, na escultura, Machado de Assis, na literatura, e padre José Maurício, na música erudita. Isso sem falar na arte dita popular, bastando citar Pixinguinha, sem falar em vultos históricos como José do Patrocínio, Cruz e Souza, André Rebouças, em nossos atletas e artistas em todos os setores.
Não constituem uma exceção, são produtos naturais daquilo que podemos chamar de "civilização". Claude Lévi-Strauss fez um diagnóstico cruel de nossa formação social, dizendo que o Brasil começou na barbárie pré-colombiana e passou para a decadência, sem conhecer o largo e profundo estágio da civilização propriamente dita. Daí o adjetivo que usou para nomear seu livro mais famoso: "Tristes Trópicos".
Em termos europeus, ele podia ter razão: os bárbaros atravessaram um largo período histórico de civilização (incluindo a Idade Média) para chegarem a uma potencial decadência cujos sintomas atualmente começam a se manifestar de forma algumas vezes dramática.
E para recuar ainda mais a constatação da negritude como elemento civilizatório, lembrarei aquele hino atribuído a Salomão: "Nigra sum sed formosa, ideo dilexit me Rex et introduxit me in cubiculum suum" (Sou negra, mas formosa, por isso o rei me amou e me introduziu em seu cubículo).
Na realidade, o rei não introduziu uma negra em sua alcova. Introduziu uma mulher que lhe deu prazer e descendência.