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Viver do próprio trabalho

 

De forma lapidar, o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil já sentenciou em um de seus grandes sucessos, há décadas: “A aranha vive do que tece. Vê se não esquece.” Menos poética mas igualmente clara, a ex-ministra Ana de Holanda saiu “Em defesa da criação”, afirmando em recente artigo: ” O que estamos assistindo, em tempo de megadisputas e transações de conteúdos entre os provedores, sites de buscas e softwares é uma violenta campanha, através de seus representantes oficiais ou não, pelo afrouxamento do controle dos direitos autorais.”

Confirmando que essa preocupação faz sentido, entidades que congregam artistas e representantes das indústrias audiovisual, fonográfica e editorial vêm se reunindo para debater o projeto do Marco Civil da Internet, que está tramitando pelo Congresso. Uma legislação necessária para tipificar crimes cibernéticos e permitir que sejam combatidos. Mas, ao mesmo tempo, um projeto que deixa a porta aberta para o desrespeito aos direitos autorais ao fazer questão de não incluir em suas premissas o compromisso de respeitá-los, como faz com outras garantias. Essa brecha deixa espaço para que se acirre o que a ex-ministra denuncia como uma guerra orquestrada contra os criadores, atiçando sobretudo os jovens contra eles. Para isso, usa-se uma estratégia simples e eficaz: a de apresentar como incompatíveis o direito de acesso ao conhecimento e o direito de remuneração do trabalho autoral.

Ora, os grandes provedores, sites e hospedeiros são economicamente poderosos, valem um dinheirão na bolsa, garantem fortunas a seus proprietários. Vendem serviços e publicidade, multiplicam seus ganhos. Não é possível que não haja formas viáveis para que possam, simultaneamente, remunerar os criadores e garantir o acesso aos conteúdos culturais. Incluir essa premissa no projeto de lei obrigará a que se encontre uma solução satisfatória e se iniba a pirataria que vem vitimando milhares de criadores e trazendo incalculáveis prejuízos à industria cultural.

Uma nação que não admite o trabalho escravo não pode pretender que o trabalho intelectual deixe de ser pago, transformando quem cria na única categoria profissional não remunerada na sociedade. Não garantir os direitos autorais e escolher esse caminho equivale a definir que só pode pretender criar quem for diletante ou rico, com outros meios de subsistência que não lhe tomem tempo e lhe permitam viver sem preocupações financeiras. Não é aceitável que se consagre em lei um mecanismo que impedirá a expressão de setores menos privilegiados da sociedade ou trará dificuldades para a manifestação de vozes dissonantes. Isso traz embutido um grave risco: o de sinalizar que quem não estiver disposto a dizer amém deve ficar de fora. Xingado de tudo e sofrendo campanhas de descrédito, enquanto se marcha a galope para uma tirania do pensamento único.

Basta ser bem intencionado para compreender o mal que isso faz à cultura nacional e ao país.

O Globo, 5/11/2012