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República dos Livros

 

Faz trinta anos que decidi atravessar a cidade do Rio de Janeiro. E não tenho a mais remota esperança de terminar a viagem, que vai do morro de São Bento à Quinta da Boa Vista. Viagem interminável pelos arquivos, bibliotecas e gabinetes. Viagem luminosa e    assaltada de espanto, como no  filme “The Swimmer”, quando o ator principal decide cruzar a cidade, servindo-se de várias piscinas, interligadas por um rio subterrâneo, totalmente   imaginário, que se percorre em doze horas e algumas braçadas. Quanto a mim, preciso de mais tempo, nesse rio imaginário e caudaloso, que é o “Dom Pedro river”, rio que passa pelas duas maiores máquinas do tempo: a Biblioteca e o Arquivo Nacional.

Na iminência de terminar um livro de ficção, que se passa justamente no reinado de Pedro II, bati às portas, físicas e digitais, daquelas e outras instituições, incumbidas de preservarem a memória. Acabo de constatar, mais uma vez, que não lhes falta repertório e guarda e que não sofrem tampouco de amnésia. Mostram-se antes vorazes, imperfeitas e inacabadas, por destino e vocação, com armazéns que apostam num crescimento vertiginoso, é bem verdade, mas igualmente por desafios de manutenção de amplitude.  

O volume do infinito e o território da cidadania aqui se misturam, sob o olhar inquieto do leitor, desse pequeno deus que dá vida aos livros, interroga, preserva e classifica.     

Tornou-se impossível pensar nos centros de memória de forma isolada, como templos inacessíveis, fechados a sete chaves, sem uma vertente com alvo na cidadania. Se assim não fosse, passaríamos da cidade dos livros para a cidade dos mortos. Mesmo porque as bibliotecas exigem longos e renovados olhos, que colaborem para a preservação, a partir da demanda renovada de seus leitores. 

O Brasil avançou nas três últimas décadas, no quesito do acervo e da leitura, consolidando um feixe de diretrizes culturais. Mas o déficit segue clamoroso, de vastas proporções e ressonâncias. E não se trata de culpar um viés ideológico, um determinado governo ou gestão institucional. O desafio é maior, republicano, e exige uma política de estado robusta e articulada, que se traduza também numa grande oferta de recursos, bem como no equilíbrio responsável entre demandas técnicas e quadros dirigentes. Uma política de Estado essencialmente transversal e paritária, que atenda a mais de um ministério, com igual cuidado, sem desníveis funcionais, que responda em cheio a uma nova cartografia da memória, parcial e coletiva, passada e futura, sem descuidar das dimensões pontilhadas do agora, cujo território emerge tanto mais sensível quanto flutuante e irregular.  

Lembro de Ramiz Galvão, sobre os “encantos da pesquisa” e do “afã, com que se corre atrás de uma informação preciosa”.  A guarda da memória é obrigação fundamental de uma república soberana, a cuja guarda somos convocados.

O Globo, 24/10/2012