É tão velho quanto a própria humanidade; mas cada vez que o mal mostra a sua cara, faz passar um frio pela espinha. A chacina da Baixada derruba a ideia de um país que quer entrar na modernidade, e tem fama de pacífico. De onde vem tanta crueldade?
Uma teoria que já passou por muitas formulações é a de que o mal vem de condições sociais desfavoráveis. O patriarca dessa corrente é Rousseau, com sua famosa frase: “O homem é bom, a sociedade é que o corrompe.” Dessa ideia se fartaram todos os utopistas sociais, começando com a Revolução Francesa.
É claro que injustiça provoca violência já dizia São Tomás de Aquino. Mas o que se chamou de “socialismo científico” esgotou o seu prazo de validade sem que a natureza humana desse o menor sinal de estar transformada. E o pós-utopia, em países como a Rússia, mostrou, se isso é possível, uma exacerbação de sentimentos antissociais.
Como diria o povo, o orifício é mais embaixo. A Bíblia, que não trabalha com utopias, mostra logo no seu primeiro livro o assassinato de Abel por seu irmão Caim e nem se dá ao trabalho de explicar a origem desse ato de violência. É como se dissesse: “As coisas são assim.” Grandes figuras da humanidade, que também olhavam as coisas de frente um Goethe, um Dostoievsky, disseram que podiam sentir dentro deles, em certos momentos, os impulsos (ou tentações) de que são feitos os criminosos.
A violência contra seres humanos, em tempos antigos, era parte do dia a dia. É verdade que havia, em certas cabeças, uma ideia de “humanidade”. Ela está presente, por exemplo, na filosofia de Confúcio. Mas isso parecia, naquela época, pouco mais que uma ideia. Mesmo hoje, o Oriente ainda não absorveu uma ideia de direitos humanos parecida com a nossa (e talvez por isso certas coisas possam ser feitas na China que, entre nós, seriam repudiadas).
Quem começou a falar em direitos humanos foram os cristãos uma pequena seita que, nascendo na Palestina, pouco a pouco foi conquistando o que se chamava, na época, de “mundo civilizado”. Para o cristianismo, há uma parcela do divino em cada ser humano e isso lhe dá uma dignidade intrínseca, independentemente de onde ele esteja situado na escala social.
Se assim é, por que algumas pessoas (cristãs, inclusive) podem se comportar tão mal? Respondem todos os mestres espirituais da humanidade: porque o ser humano é uma mistura absolutamente improvável de matéria e espírito; de instintos fortíssimos e de refinamentos intelectuais e psicológicos. Os animais também têm instintos poderosíssimos, mas não parecem capazes de maldade. A maldade seria uma espécie de inversão do bem, de irritada negação do bem.
Este é o nosso coquetel. Podemos oscilar entre o máximo de bondade e o máximo de maldade. Goethe (sempre Goethe) retratou esse drama no seu “Fausto”, onde Mefistófeles é o espírito de negação. Alguém que visitou Goethe em sua alta maturidade comentou: “Um de seus olhos vazava sabedoria; o outro parecia o olhar de um demônio.” Goethe equilibrou esses dois lados com um férreo autodomínio, ou com as compensações trazidas pela arte. Já o mistério cristão vai além de considerações racionais. Ninguém precisa ser Goethe para entender um Evangelho. Mas a história do Cristo não é um enredo de novela, não tem explicações fáceis; e, depois de dois mil anos, continua a desafiar o Ocidente.
Tudo se passa em cenas muito fortes começando com as imagens que fascinaram os pintores (por exemplo, a Virgem com o menino) e terminando com a cruz, que já não é uma possibilidade poética.
Cristo era bom ou não teria atraído multidões. Fazia curas o que outros mestres religiosos também faziam. Mas o máximo do drama é o que se conta na Semana Santa.
Por que ele tinha de morrer, e de morte tão cruel? A liturgia católica repete: “Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo...” O cordeiro remete aos sacrifícios do Antigo Testamento; mas o cordeiro, segundo a doutrina cristã, desta vez é o próprio Deus, que se deixa morrer enquanto homem, entre sofrimentos indizíveis, como uma espécie de contrapeso à maldade do mundo. Impedir a maldade seria retirar ao ser humano a sua liberdade, a sua capacidade de escolha. Mas um sacrifício (como nos velhos tempos) é oferecido como compensação. Não para aplacar a cólera de um Deus vingativo (como sugere uma teologia superficial), mas para dizer que Deus está conosco mesmo em nossos piores momentos. E é capaz de dizer ao ladrão crucificado ao seu lado: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso.”
O Globo, 16/9/2012