Amanhã, teremos tempo quente no Supremo, com relator e revisor do mensalão numa saia justa, o primeiro condenando e o segundo absolvendo os mesmos réus e pelos mesmos motivos. Os pareceres até agora apresentados parecem perfeitos -leis, decretos, parágrafos, incisos, páginas e páginas citadas-, só as conclusões são opostas. Isso me faz lembrar Jonathan Swift, que citei em crônica da semana que encerrou.
Gulliver foi dar numa ilha estranha, habitada por liliputianos, pigmeus divididos em duas tribos que viviam uma guerra feroz, sanguinária. O rei de uma das tribos queria que o gigante (para eles) lutasse contra os seus inimigos. Gulliver quis saber o motivo da guerra. O rei explicou: "Nós todos comemos um ovo quente no café da manhã. Acontece que o meu povo corta os ovos pela parte de cima, a mais estreita; nossos inimigos cortam os ovos pela parte de baixo, a mais grossa. Uma afronta que dura 800 anos!".
O "gigante" perguntou: "Mas não há uma lei que estabeleça como os ovos devem ser cortados?".
O rei pareceu indignado: "Mas claro que há! Está no primeiro artigo de nossa Constituição!".
E informou, com real autoridade: "O artigo é claro. Há 800 anos ninguém ousou reformá-lo. Nele está escrito com todas as letras: 'Os ovos devem ser cortados de maneira certa!'".
Swift foi deão da catedral de Dublin. O livro "Viagens de Gulliver" marca um momento da língua inglesa e é considerado uma das dez maiores obras-primas da literatura universal. Machado de Assis o lia todos os anos e lhe herdou o estilo e a sátira.
Os ministros do STF são homens de "notável saber jurídico". Bem podiam, nas horas vagas, saber como as coisas se passavam numa terra de pigmeus, onde a lei estava acima de tudo.
Folha de S. Paulo, 26/8/2012