Poucos anos depois, num caso com Ebb, filha de suecos e solista no Corpo de Baile do Teatro Municipal, sentei ao piano de um inferninho naquela zona braba da Major Sertório, em São Paulo.
Acho que se chamava "Tetéia". Toquei a música que ela me pedira, "Unchained Melody", tirei-a de ouvido, não me habituava ao piano, jamais me habituaria.
Ebb ficou ao lado, cantarolou a letra baixinho, tinha boa voz, seu repertório era delicado como ela própria, gostava de "Alone", de Nacio Herb Brown, canção que ouvíramos em "Uma Noite na Ópera", dos irmãos Marx. Eu preferia "Tornerai", que ela cantava no original, em italiano, apesar da versão mais conhecida ser a francesa, "J'Attendrai", gravada por Jean Sablon, uma adaptação do coro a "bocca chiusa" que serve de intermezzo a "Madama Butterfly".
Quando acabei a "Unchained Melody", um sujeito embriagado aproximou-se. Ele não percebera que o pianista oficial do inferninho descansava, tomou-me como empregado da casa ali colocado para servi-lo. Com a voz engrolada, pediu outro sucesso da época:
— Chega de velório! Toque uma coisa alegre, como "Os Pobres de Paris".
Eu disse que não sabia — o que era verdade, ouvira duas ou três vezes aquela melodia dançante, não a guardara, não a tomara para mim. Ele assoviou os primeiros compassos. Olhei Ebb, ela parecia divertida. Aproveitando o assovio do sujeito, iniciei o ritmo sincopado que parecia sair de uma pianola do final do século 19.
Concentrado em manter o ritmo e a melodia, nem percebi que o sujeito deixara de assoviar. Quando olhei para o lado, ele dançava com Ebb na pista quase vazia. Ela, mais alta do que ele, se destacava na penumbra cafona dos inferninhos da época. Ebb mantinha a postura de bailarina, sua figura esguia e loura flutuava como uma das wilis de "Giselle", virgens que morreram um pouco porque amaram muito. Tudo nela contrastava com a figura lamentável do sujeito atarracado que, tendo bebido demais, mal se sustinha em pé.
Achei aquilo um desaforo, larguei o piano e fui separá-los. Empurrei o sujeito com força, ele não reagiu, acho que chegou a balbuciar uma desculpa na base do "eu não sabia...", e voltou para a mesa dele.
Ia reclamar de Ebb, mas ela se antecipou:
— Você não devia ter feito isso. Ele estava se divertindo.
— Mas eu não estava.
Segurei-a pelo braço — os braços dela eram brancos, eu gostava de vê-los se movimentando no segundo ato de "Giselle" — e levei-a para fora.
Na calçada, olhei o edifício Copan, que estava em final de construção. Sendo o mais alto daquele trecho, sua curva de concreto aparente era novidade na época, uma vez pronto seria um dos logotipos da cidade. Mas em arcabouço, com seus andares curvos entupidos de treva, destacado do céu sem estrelas, parecia um fantasma em repouso.
Perguntei a Ebb com um pouco de raiva:
— E você? Também estava se divertindo?
— Não. Mas você estava melhor tocando aquela música idiota. Você nunca compreenderá nada de nada.
Era a segunda vez, naqueles dias de nossa escapada em São Paulo, que ela se referia à minha mediocridade. Na véspera, reclamara do jeito com que a possuíra. Não a olhara nos olhos, como ela gostava, mas nos ombros dela, que eram doces, sempre me excitavam.
Eu me defendera:
— Estou sempre olhando para você.
— Ontem você não olhou para mim...
— Gosto de seus ombros... são brancos... suaves...
— Mesmo assim devia ter olhado. Tive a sensação de que você estava pensando em outra mulher...
O pianista da casa voltou ao piano que eu deixara aberto. Fez uma variação banal, ameaçou um bolero, mas engrenou um tango antigo.
Como a pista ficou vazia, ("Por Una Cabeza" não combinava com o inferninho), ele mudou a música e atacou um Cole Porter, "Anything Goes". Vários casais se levantaram, Ebb também quis dançar, mas preferi ficar na calçada, enfrentando o fantasma de concreto, escombro de uma cidade abandonada. (Trecho de um romance em preparo, ainda sem título.)
Folha de S. Paulo, 17/8/2012