Se fosse muçulmano, umbandista, técnico de futebol, comunista ou lixeiro, dom Eugenio Sales seria o que sempre foi: um homem reto, sincero, fiel a seus princípios e, sobretudo, humano. Acontece que foi sacerdote, bispo e cardeal. Sua trajetória tinha um ponto de referência lá em cima -no caso dele, o Deus no qual acreditava e a igreja à qual servia em tempo integral e em modo total.
Conservador, sim, e mais do que isso: coerente e sincero com sua forma de pensar e agir no mundo.
O pessoal de certa esquerda o criticava porque não bajulava causas e doutrinas que entravam em moda. Ele fizera sua opção básica por uma religião estruturada, multissecular, que passara por um "aggiornamento" no Concílio Vaticano 2º. Não trocaria esse corpo de pensamento social e ação por um marxismo superado, um socialismo terceiro-mundista e badalativo.
Além da doutrina tradicional da igreja à qual serviu, atualizou-se com as encíclicas que foram até citadas por João Goulart no famoso comício de 13 de março de 1964: a "Mater et Magistra", a "Populorum Progressio" e a "Pacem in Terris". Pessoalmente, creio que nem Jango nem a turma que o cercava tivessem lido (ou entendido) os documentos que gostavam de brandir para amenizar resistências numa sociedade que, afinal, se rotula de cristã ocidental.
Protegeu perseguidos políticos daqui e de fora, com uma firmeza que desarmava os militares. Eu próprio, em certa época, fui rastreado por ele e por dois de seus auxiliares, dom Eduardo e dom Rafael.
Em alguns momentos de perigo que atravessei, ia dormir na casa de dom Eugenio, no Sumaré, quando fumávamos nossos charutos.
Detalhe importante: ele nunca me chamou pelo meu nome usual, mas de Heitor. Como meu pai e minha mãe.
Folha de São Paulo, 15/7/2012