A crise do Paraguai põe em causa, do ângulo da maturidade democrática do continente, muito mais do que a mera deposição de Lugo. O paradoxo é que a queda do presidente é perfeitamente constitucional, nos termos da sua Carta Magna. Mas mostra, ao mesmo tempo, o atraso do país, a se lograr, de fato, um Estado de Direito generalizado na América Latina. Falta à Carta paraguaia a garantia elementar da independência entre os Poderes. É inútil que se refira à separação, ou coordenação, e recíproco controle, se aquela primeira condição não é assegurada.
O Brasil, hoje, lidera o processo ao já falar em Estado Democrático de Direito, tornando a nossa Constituição irreversível às conquistas do regime democrático, tanto do ângulo formal da proteção dos direitos da pessoa, quanto na garantia pública do bem-estar coletivo. O que se abre ao debate latinoamericano, na sequencia da reunião de Mendonza, é a contradição que representa o art.225 da Carta paraguaia, que subordina ao chamado "juízo político", a cargo do Legislativo, o Presidente, não só por delitos cometidos no exercício de seus cargos, ou por crimes comuns, mas "por mau desempenho de suas funções". Tal entrega, inteiramente a sobrevivência do Executivo à subjetividade dos legisladores, na avaliação do que seja a conduta ordinária do chefe de Estado, e, por aí mesmo, inseparável do sentimento da hora, ou do jogo das maiorias, mais interessadas na conquista do poder do que na vigência das instituições.
O que está em causa é a garantia, primariamente outorgada à população, de respeito ao direito de voto e ao cumprimento do mandato pelos eleitos. O art. 225 permite, a qualquer tempo, a remoção do Presidente, no jogo do instante das maiorias parlamentares. A decisão do Legislativo paraguaio colide com a presunção de governabilidade, a ser rompida, tão só, no Estado Democrático de Direito, pela prova e pela exaustão do processo de crime do primeiro mandatário. E a evidenciar, ainda, de como a subjetividade do julgamento choca-se com os primeiros anos do desempenho de Lugo, aí está o crescimento inédito do PIB paraguaio no triênio, e o começo de uma nítida política de desconcentração de renda e avanço salarial.
Para além do incidente Lugo, a vasta reflexão que ora se abre é a de saber se permanece na convivência da comunidade continental o país que descarta, frontalmente, princípio constitutivo da democracia do século XXI. O exercício do direito ao mandato é expectativa direta, aliás, do corpus eleitoral e do sufrágio, e não de sua representação, e é incabível qualquer cassação de mandato ao simples alvedrio de maiorias do Congresso, nas clássicas tolerâncias do continente com seus Estados trânsfugas. A pena não pode ficar tão só na suspensão do país, frente ao processo de integração da América Latina, consoante o protocolo de Ushuaia. E o que não pode sobreviver é a atual redação do art. 225 da Carta paraguaia, que submete a permanência dos governos à ação entre amigos, ou ao convescote da hora.
Jornal do Commercio (RJ), 6/7/2012