As notícias da Síria não podiam ser mais dolorosas. Como se a lógica do pior não tivesse escrúpulos em progredir, alimentada pelo ódio irreversível das facções no auge da guerra civil. Assusta o número de mortos, alguns dos quais com sobrenomes que recordam o das famílias que me abriram suas casas de forma tão generosa naquele país.
O quadro piora com a expulsão do jesuíta Paolo dall’Oglio, o mais destemido e lúcido promotor da paz, homem de grande relevo moral, que fui visitar no deserto, não longe de Nebek, ao norte de Damasco. Paolo viu-se obrigado a deixar o país em que vive há trinta anos, onde fundou a comunidade de Deir Mar Mussa, laboratório de encontros impensáveis e diálogos fascinantes, onde as alegadas barreiras de ordem ideológica ou confessional despem-se da opacidade e se revestem de transparência.
Paolo decidiu viver meses a fio próximo das sangrentas batalhas de Homs. Procurou todos os grupos armados, incluindo as forças leais ao governo, o exército sírio livre, a brigada al-Farouq, próxima da Irmandade Muçulmana, além de outros grupos de corte salafita. Paolo chegou inclusive a por fim ao sequestro de um homem de quarenta anos. Sua coragem é reconhecida por todos os agentes do conflito, mas a reconstrução da paz não repousa no esforço de um só indivíduo.
O governo de Damasco ficou claramente irritado com a carta aberta de Paolo a Kofi Annan, que merece leitura cuidadosa por parte dos que se empenham no término do conflito. Uma das primeiras necessidades do povo sírio se traduz na presença massiva da Cruz Vermelha e por motivos humanitários. Quanto ao processo de negociação política, exige-se a mudança real e imediata na estrutura de poder, cujo “regime obedece a um grupo obscuro de super-hierarcas”.
O argumento deplorável de que os árabes e a democracia são incompatíveis, além de absurdo, atende aos interesses da guerra, às engrenagens de uma razão de estado suicida e devastadora. Dall’Oglio acredita que a Síria poderá ser a médio prazo um ponto de equilíbrio nos conflitos regionais e admite que a maior parte da população não endossa o contexto de uma guerra fria (como a oposição entre Rússia e Estados Unidos levaria a supor), mas defende um espaço multipolar, anti-imperialista, identificando-se como um polo árabe, regido pelos princípios gerais de emancipação e de autodeterminação.
Além disso, seria preciso arregimentar um contingente de trinta mil homens, uma brigada de paz que garanta o respeito ao cessar-fogo e à defesa da população.
Paolo dall’Oglio insiste na “criação de comitês de reconciliação locais, protegidos pelos boinas azuis e coordenados em conjunto com as agências especializadas da ONU, com atenção especial aos presos, sequestrados e desaparecidos das diferentes partes em conflito. Será necessário aumentar o mais rápido possível a reinserção dos jovens que foram atraídos para o terrorismo, para as atividades armadas ou para o crime”.
A carta de Paolo busca um processo de intervenção voltado para a paz, realidade que deverá ser redesenhada a partir do consenso democrático, não como decorrência de uma imposição marcial ou da vingança do status quo do governo sírio. Não podemos combater os ódios represando-os. Uma vez interrompidos, ressurgem com maior brutalidade. Desejamos um Oriente Médio sem represamento de ódios, dissipados num gesto consensual permanente.
Falei por telefone com Paolo dall´Oglio pouco antes de ele chegar à fronteira com o Líbano. Mesmo com o telefone grampeado, disse-me que a Síria jamais deixaria de habitá-lo e que ele não deixaria de lutar pelo seu povo. Disse-me ainda que espera do Brasil uma proximidade mais forte com a Síria, à altura dos laços de amizade que as famílias de imigrantes ajudaram a criar, de forma anônima, sem alarde, sempre a favor do diálogo e da paz. Desse lado da linha, mal consegui conter a emoção.