Ezequiel, escravo dos Caldeus, teve uma visão às margens do ribeirão do Cobar, afluente do Eufrates.
Não devemos pasmar de ter Ezequiel visto animais de quatro faces e quatro asas -isso andava em moda naqueles tempos, e o todo-poderoso, cuja autoria dessas visões bíblicas é inconteste, tinha pouca imaginação e muito se repetia.
Mas devemos pasmar da sutileza de Yahveh (também conhecido como Javé), que mandou a Ezequiel um estranho mandamento: comer, durante 390 dias, pão de cevada coberto de excremento humano.
O profeta cumpriu o mandamento sem relutância, mas, à altura de 156 dias, já estava farto de comer excremento humano e apelou para a misericórdia divina no sentido de obter pasto mais saboroso. A bondade divina logo se fez sentir, e Ezequiel obteve consentimento para comer excremento bovino.
Homens ímpios dos séculos que se seguiram acharam semelhante mandamento indigno da majestade divina. A impiedade de tais homens fez com que fosse esquecido um detalhe: aos olhos do Criador, um excremento humano ou bovino pouco difere de um hambúrguer ou de uma pizza napolitana.
Depois de Ezequiel ser submetido a tão longa e extraordinária dieta, não é de estranhar que a leitura de seus livros (que integram o Antigo Testamento da Bíblia, tanto a judaica como a cristã) fosse proibida nas sinagogas aos menores de 30 anos -limite moral que os povos posteriores baixariam para os 18 e, mais tarde, para os 16. Pois Ezequiel é como um ancestral do Nelson Rodrigues, um Henry Miller, uma Dercy Gonçalves dos velhos tempos.
Vejamos o edificante capítulo 26 de seu profético livro: "Quando nascestes, ainda não vos tinham cortado o cordão umbilical, estáveis completamente nua, eu me apiedei de vós: depois crescestes, vosso seio se formou, vosso sexo cobriu-se de pelos, eu passei e vos vi e cobri vossa ignomínia, estendi sobre vós o meu manto, vos lavei, perfumei e vesti".
Quem diz isso é o Senhor. E o mesmo Senhor prossegue no seguinte passo, ainda segundo o relato atribuído ao Espírito Santo ou a Moisés -o direito autoral dos livros sagrados é irrelevante: "Então confiante em vossa beleza, fornicastes por vossa conta com todos os passantes e vos prostituístes até nas praças públicas e abristes as pernas a todos os viajantes e vos deitastes com os egípcios, os medas, os persas, os assírios, os caldeus, os filisteus e os homens de todas as tribos ao longo do Eufrates". A expressão "abrir as pernas", que muito se usa no futebol e na política para significar amolecimento do jogo ou maioria parlamentar, tem, como vemos, uma origem respeitável.
Além do capítulo 26, há o 28, cujo santificado teor é o seguinte: "Oola era louca pelos jovens senhores, deitou-se com os egípcios desde a mais tenra idade".
Pelo visto, o divino Espírito Santo nutria birra especial para com os egípcios, pois deitar com eles era cúmulo, o sumo da vergonha e da depravação. Logo em seguida, há o relato das aventuras da irmã de Oola, cujo nome era Ooliba, e que fornicou até com os medas e assírios (outra pinimba do Espírito Santo). Quando descobriu sua vergonha, tratou de multiplicar suas fornicações. No fim da vida, só fornicava com homens "cujo membro se parece com o do asno e que expandem sua semente como cavalos".
O sábio Concilio de Trento (1545 a 1563), manifestando-se sobre esses piedosos trechos, louvou a sutileza de simbolizar em Oola e Ooliba as iniquidades de Jerusalém e de Samaria.
E o profeta Ezequiel, por cuja boca falou o Senhor de todas as coisas, aí está a espera que um consórcio ítalo-americano, sob direção de Scorsese, Spielberg ou Zeffirelli, ou mesmo de um produtor nacional com patrocínio da Petrobras e com os benefícios da Lei Rouanet, faça um filme sobre as duas irmãs.
Seus edificantes ensinamentos bem merecem uma superprodução histórica, com leões, elefantes, trovões, raios e coriscos, palácios de papelão, gladiadores, música de Morricone, cor em alta definição, censura livre e bonequinho de "O Globo" aplaudindo de pé. Se precisarem de mim, estou às ordens para fazer o papel de um dos egípcios. Em último caso, de um assírio.
Folha de São Paulo, 1/6/2012