Em crônica da semana passada, na página 2 ("Quem paga o pacto"), toquei perifericamente num assunto que continua a provocar polêmica, inclusive com manifestos de militares da reserva, que são contra, e com o massivo apoio de vários e numerosos setores da sociedade, que são a favor.
A Comissão da Verdade, que ainda não entrou em funcionamento, mas é exigida e combatida por interessados numa ou noutra solução, ameaça um tema que fatalmente provocará debates -e queiram os fados que fique apenas nos debates, até que surja uma solução consensual.
Tomando conhecimento das opiniões veiculadas na mídia e em reuniões que especificamente tratam do caso, desconfio que o terreno seja movediço, uma vez que há margem para equívocos sempre que se apela para "a verdade". O próprio Cristo, no processo que o levou à morte no Calvário, deixou sem resposta a pergunta de Pilatos: "Quid est veritas?" -o que é a verdade?
No caso em questão, alguns militares e civis nostálgicos dos tempos duros da repressão política acreditam que se trata de um revanchismo, do olho por olho, dente por dente; uma vez que o resultado da comissão possa gerar processos na Justiça, é de boa doutrina que certos crimes não prescrevam.
Mortes, torturas, desaparecimentos e exílios são atentados habituais nos regimes de força, tanto os da direita como os da esquerda: exemplos antigos e atuais são do conhecimento geral. Um país que se proclama democrático e moderno não pode nem deve esconder a sua história. Milhares de brasileiros clamam pelas vítimas da brutalidade do Estado. Eu inclusive.
É necessário e urgente que atos e fatos do nosso passado recente sejam conhecidos em sua plenitude, não por exigência de uma vingança que pode até ser considerada natural, mas como consciência e exemplo de nossa própria história.
Dentro desse enquadramento, a Comissão da Verdade deve entrar logo em funcionamento para que a nação fique sabendo como e com quem o arbítrio foi instaurado e prevaleceu durante mais de duas décadas.
Acontece que são muitos aqueles que desejam mais, contestando a anistia que foi negociada duramente entre os últimos governos militares (Geisel e Figueiredo) e as lideranças civis, e que, expressando a legítima vontade do povo, tornou possível a redemocratização do país.
Foi aceito por ambos os lados o conceito da anistia plena, geral e irrestrita para todos os crimes políticos de determinado período, cometidos em nome da ordem reinante ou em nome da justiça social e econômica, violentada pela mesma ordem então reinante.
Volta e meia é invocado o exemplo do Tribunal de Nuremberg, que puniu com morte e prisão a barbárie do regime nazista. Não houve pacto, mas uma guerra violenta vencida pelos aliados. As sentenças daquele tribunal, que respeitou inclusive o direito de defesa dos acusados, condenando muitos à forca e outros a diversas graduações de pena, foram um momento digno da própria humanidade.
No caso de Nuremberg, não houve vingança nem justiça retardada. Os nazistas não se entregaram, Roosevelt liderou a cúpula aliada, exigindo a rendição incondicional do adversário, negando-se a qualquer acordo ou negociação com o inimigo.
É sabido que alguns militares e políticos, dentro e fora da Alemanha, incluindo nazistas de primeiríssimo escalão, tentaram antecipar o fim da guerra com um pacto que foi recusado prontamente pelo "Big Four" (Roosevelt, Stálin, Churchill e de Gaulle), apesar das centenas de milhares de vítimas dos dois lados que ainda seriam sacrificadas.
No caso do Brasil, sobretudo após a decretação do AI-5, de 13 de dezembro de 1968, surgiram vários movimentos e tentativas (algumas desesperadas) de derrubar a ditadura com a luta armada (várias, por sinal), que deram aos militares o pretexto para o brutal endurecimento do regime, que afinal caiu de podre, mas ainda em condições de negociar com a nação a anistia.
Quanto mais o governo de dona Dilma retardar o funcionamento pleno, efetivo e justo da Comissão da Verdade, maior será o risco de uma fenda na sociedade, colocando-se o país à disposição de demagogos e aventureiros, fardados ou não, de um ou de outro lado.
A Tarde (BA), 23/3/2012