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Democracia em questão

 

Acho que já contei esta história, mas vou repeti-la para justificar o título desta crônica. Faz tempo, o escritor Álvaro Lins, crítico literário e chefe do Gabinete Civil no governo JK, recebeu convite oficial para visitar a Suíça. Começou em Genebra. No primeiro dia, leu os jornais da cidade e ficou sabendo que haveria eleição geral em toda a Confederação Helvética.

O cicerone colocado à sua disposição veio apanhá-lo no hotel e começou a mostrar os pontos mais interessantes da cidade. Em dado momento, Álvaro perguntou: "Li nos jornais que hoje é dia de eleições gerais, mas não estou vendo nenhum movimento, nenhuma fila, nenhuma seção eleitoral...".

O cicerone explicou: "Não, não temos isso de filas e seções especiais. Em cada edifício público, banco ou escola, há uma maquininha, o eleitor aperta o número de seu candidato e vai embora, sem nenhuma outra formalidade".

Álvaro pensou um pouco e novamente perguntou: "E se um eleitor apertar mais de uma vez o número de seu candidato?". O cicerone ficou escandalizado: "Mas dr. Álvaro, quem faria isso?".

Álvaro não teve outro remédio senão recolher o palpite e admitir que na Suíça não haveria ninguém capaz de façanha tão condenável.

Imaginemos o processo suíço instalado no Brasil. Um candidato a vereador em São José das Três Ilhas (MG) amanheceria junto da maquininha, dela tomaria posse, ali passaria o dia inteiro, apertando o próprio número. Por essa e por outras, Churchill declarou que a democracia era o pior regime político, excetuando-se os outros. Vencedor absoluto da ditadura nazista, Churchill perderia a primeira eleição pós-Guerra. Somente uma democracia estável, em nível superior, explicaria a derrota de um gigante. De um herói incontestável.

O dilema colocado pela política, desde que os povos na mais remota Antiguidade começaram a se estabelecer como nações soberanas, até agora não superou a dicotomia maniqueísta entre democracia e ditadura.

Há pequenas variantes (regimes mistos, parlamentarismo, colégios eleitorais, monarquia constitucional etc.) que não modificam essencialmente um regime do outro.

Qualquer cidadão minimamente politizado conhece e amaldiçoa todos os malefícios, todos os crimes e aberrações das ditaduras. Daí que a democracia é venerada como a melhor forma de regime político, excetuando-se as outras -repetimos Churchill.

Agora a pergunta: depois de viver séculos e séculos cultuando a democracia como a solução ideal para a vida das nações e dos indivíduos, é natural que algum espírito de porco questione o problema. As elites pensantes da humanidade, filósofos, historiadores, estadistas, gênios de toda a espécie ainda não conseguiram criar não digo uma terceira via, mas um sistema de conduta política mais eficiente e justa. E que não poderá ser imposta com tanques, canhões e mísseis dos povos mais fortes.

No momento atual, neste início de século 21, com quase todos os países declarando-se democráticos, atravessamos sucessivas crises que não poupam sequer as grandes economias do mundo.

Quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras, querendo expressar minha posição pessoal sobre a sociedade como um todo, fui buscar o fecho do meu discurso em Eça de Queiroz, que era apenas um escritor, um literato sem formação política nem filosófica. Encontrei em suas "Notas Contemporâneas" as palavras que poderiam me definir ideologicamente:

"A presença angustiosa das misérias humanas, tanto velho sem lar, tanta criança sem pão, a incapacidade da Monarquia e da República, da Ditadura e da Democracia para realizar a única obra urgente do mundo, a casa para todos, o pão para todos, lentamente me tem tornado um vago anarquista, um anarquista entristecido, humilde e inofensivo."

Bem sei que a anarquia pura e simples, e, sobretudo, inofensiva, sem bombas, saques, sem dinamitar pontes e trens nem degolar criancinhas nos orfanatos, representaria uma solução desesperada, cujo único mérito seria contestar o establishment, levando a humanidade a criar um regime político baseado nas liberdades individuais, operado com paz e produzindo progresso. Liberdade, paz e progresso. Nesta ordem.

Folha de São Paulo, 10/2/2012