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O inverno de nossa desesperança

 

Última aula do ano letivo, o professor se despede da classe, deseja que todos façam um bom exame final, tenham as melhores férias possíveis e, mais por delicadeza do que por necessidade, pergunta se existe qualquer dúvida sobre a matéria dada no curso.

Um dos alunos quer saber se pode levar dicionário para as provas, outro se pode usar caneta vermelha ou azul. Um terceiro, que perdera algumas aulas, pergunta se Agripina era mãe ou filha de Nero.

Lá de trás, um garoto levanta a mão. Está nervoso: por consenso geral, é o pior aluno do colégio. Sua dúvida é atroz: para explicá-la, o professor terá de dar, em poucos minutos, toda a matéria do ano, desde a primeira aula.

Um cronista está longe de ser um professor. Tampouco os leitores são alunos na expectativa de grandes conhecimentos. Mas, escrevendo na imprensa há anos, volta e meia me deparo com alguém que me atribui ignorância maior do que aquela que realmente tenho, embora eu próprio reconheça que nada sei de nada.

Não faz muito, citando perifericamente a eleição de Hitler, que depois da tentativa de tomar o poder por um golpe, decidiu chegar lá por via legal, um leitor consultou um sábio que ele conhecia.

Reclamou com a ombudsman, que me pediu uma explicação. Mandei uma relação de uns 12 ou 15 livros sobre o assunto, com indicação de autor, editora e ano de publicação. Pelo menos desta vez, parece que estava com razão.

Antes que algum leitor erudito reclame novamente, permito-me uma explicação talvez desnecessária. Semana passada, também citei perifericamente o general Patton, que queria porque queria tomar Berlim antes dos soviéticos, alegando que estava mais próximo da capital alemã e em melhores condições estratégicas do que os russos.

Mas o comando aliado, com Stálin aproveitando-se do estado de saúde de Roosevelt, que estava quase terminal, exigiu que a glória da conquista fosse dada aos soviéticos, que hastearam a bandeira da foice e do martelo no mastro onde, durante anos, tremulara a bandeira com a suástica.

Patton já criara caso ao esbofetear um soldado a ele subordinado, por pouco não foi destituído de seu posto, chegou a ser ameaçado de responder a uma corte marcial.

Babando de ódio, aceitou as ordens de Eisenhower, comandante supremo das tropas aliadas. Mas fez uma profecia que deu certo: veio a crise que cortou Berlim em dois pedaços e praticamente deu início à Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, que demoraria alguns anos, dividindo o mundo entre as duas superpotências.

Que me perdoem esta longa lembrança de uma história mais ou menos recente. A citação do episódio marginal deveu-se a uma consideração feita em crônica anterior.

O mundo atual é diferente, surgiram novos países, outros desapareceram dos mapas, mudaram as circunstâncias e o próprio miolo da história, a tecnologia deu e continua dando saltos assombrosos.

Apesar disso, a situação mundial, sobretudo na economia das nações, enfrenta sucessivas crises. Países que eram referência de progresso e estabilidade estão às voltas com problemas que eram exclusividade do mundo subdesenvolvido: corrupção, desemprego, dívidas impagáveis, desníveis sociais.

Os organismos internacionais, os grandes grupos de sete, oito ou 20 nações que se reúnem periodicamente, colocam a própria democracia ocidental em questionamento.

Não surgiu ainda uma solução para tantos e tamanhos desafios. Louvamos a Primavera Árabe que deu fim a algumas ditaduras quase que históricas, mas ninguém pode soltar foguetes antecipados. Ao contrário da natureza, não se sabe se teremos de volta o "Winter of Our Discontent" -o inverno de nossa desesperança (Shakespeare/Steinbeck).

A dicotomia democracia e ditadura continuará separando a humanidade em dois blocos antagônicos. Apelar para invasões militares, com tanques, canhões e mísseis matando a população civil, é uma solução que nos coloca de volta à barbárie.

Não sei se é falta de imaginação ou de caráter, mas as lideranças mundiais, escoradas na força, precisam encontrar um novo caminho para que tenhamos, em primeiro lugar, a liberdade, depois a paz e, se possível, o progresso. Nesta ordem.

Folha de São Paulo, 3/2/2012