Um leitor desta coluna pergunta-nos: “É correto dizer ‘eu abulo’ em Portugal? Ou o verbo não deve ser conjugado na 1ª pessoa do singular do presente do indicativo em nenhum país de língua portuguesa?”
‘Abolir’ pertence tradicionalmente ao grupo dos chamados ‘verbos defectivos’, isto é, aqueles que, pelo significado ou pela ausência de eufonia (= boa sonoridade), não se conjugam em todas as suas formas, como os demais companheiros. Pela significação, como ocorre com os que se referem às vozes dos animais ou fenômenos meteorológicos, só completos em emprego metafórico (por exemplo: os presos ladravam de raiva; choveremos trovoadas nos inimigos); pela falta de eufonia, como “com a crise, eu falo (= vou à falência).”
Numa comparação entre gramáticas de épocas diferentes, notam-se mudanças de lições, numa prova evidente de que uma língua se modifica através do tempo. Nos compêndios mais antigos, a lição mais comum é que ‘abolir’ só se conjugaria, no presente do indicativo, na 1ª e 2ª pessoas do plural: abolimos e abolis. Não possuindo a 1ª pessoa do singular, não teria todo o presente do subjuntivo; portanto, nada de ‘abula’, ‘abulas’, etc. Não teria todo o imperativo negativo, e do afirmativo só teria ‘aboli’ vós, tirado do presente do indicativo (abolis), sem o –s final. Já nas gramáticas mais modernas, a lição corrente é que ‘abolir’, no presente do indicativo, só não se conjuga na 1ª pessoa do singular: aboles, abole, abolimos, abolis, abolem. Faltando-lhe a 1ª pessoa, não se conjuga todo o presente do subjuntivo e imperativo negativo. No imperativo afirmativo, só as formas de 2ª pessoa do singular e do plural (abole tu, aboli vós).
Em resposta ao leitor, não se usa ‘abulo’ nem em Portugal nem no Brasil.
Dicionários de verbos há que conjugam ‘abolir’ em todas as suas flexões, proposta que põe à disposição dos usuários todas as formas para que, se sair um dia do rol dos defectivos, já as tenham à mão. É o caso do “Dicionário de verbos portugueses conjugados”, do filólogo lusitano Rodrigo de Sá Nogueira. Um nosso grande conhecedor da língua e de seus recursos, Mário Barreto, já dizia, com propriedade, em livro publicado em 1922: “Um obscuro paulista diz-nos ainda que tem dúvidas sobre se se usa a terceira pessoa do indicativo presente de ‘carpir’ e ‘brandir’, pois lê nalguns compêndios que estes verbos defectivos só se empregam nas inflexões que têm ‘i’: brandiu, brandindo, brandido, etc. Pelos exemplos que copiamos em seguida, verá que também se empregam os verbos ‘carpir’ e ‘brandir’ nas formas cuja terminação é ‘e’” (pág. 173 da 3ª ed. de “De gramática e de linguagem”, Presença, Rio de Janeiro, 1982). Depois de citações de autores dos séculos XVII e XIX com ‘carpem’, ‘carpe’, ‘brande’, conclui sua lição com chave de ouro: “A morfologia não tem leis especiais para excluir de sua formação total nenhum dos verbos que se têm por defectivos. Nenhuma lei de estrutura se opõe a que se forme ‘abole’, ‘colorem’, ‘pule’, ‘dele’ [de ‘delir’], ‘demulo’. O empregá-los numa forma e deixar de empregá-los noutra é coisa que toca ao USO”. [continua]
O Dia (RJ), 29/1/2012