Uma leitora desta coluna nos envia a seguinte dúvida: “Necessito de sua ajuda para esclarecer a análise e o emprego das locuções “à vela” e “à lenha” (...) e, ainda, o emprego do acento grave na locução adjetiva”.
O assunto ainda diz respeito ao emprego ou não emprego do artigo definido antes do substantivo, que vimos no domingo passado. Na consulta de hoje se trata de substantivo feminino singular. Já dissemos nesta coluna que a unidade linguística ‘a’ (artigo, pronome ou preposição) é, na pronúncia portuguesa, um vocábulo átono de timbre fechado, quando não se funde, por crase, com outro ‘a’. Quando ocorre a crase, é proferido com timbre aberto. Este fenômeno fonético exerce papel importante para esclarecer a indagação da nossa leitora. Não havendo artigo antes de substantivo feminino singular em locuções adverbiais e adjetivas do tipo de [sair] a noite (= de noite), [barco] a vela (= com vela, de vela), [matar] a fome (= por fome), a preposição ‘a’ deveria ser primitivamente enunciada com timbre fechado. Segundo estudo levado a cabo pelo nosso genial linguista Manuel Said Ali (“O acento em á”, Meios de expressão e alterações semânticas, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1930), começou-se a usar acento agudo para marcar, na escrita, o timbre aberto, a partir do século XVI. Contraria a história deste fenômeno a explicação por crase, como se costuma fazer entre nossos gramáticos. A mudança para timbre aberto se deve a uma intenção de expressividade discursiva exigida pela clareza do bom entendimento do contexto.
É expediente comum em línguas o recurso a fenômenos fonéticos de entonação para explicitar fatos gramaticais (morfologia e sintaxe) e lexicais. Hoje utilizam os portugueses “amamos” (â) para o presente e “amámos” para o passado. Nos textos dos séculos XVI a XVIII se usou o acento agudo para a indicação do timbre aberto da preposição, repetindo o sistema para a vogal aberta da sílaba tônica [fará, dirá, etc.]. No século XIX, com as regras para o emprego dos acentos agudo, circunflexo e grave, passou-se a usar o grave em “[sair] à noite”, “[barco] à vela”, “[matar] à fome”. Desta forma, como corretamente ensina Said Ali, no artigo citado, substituindo-se ‘á’ (com acento agudo) por ‘à’ com acento grave: “Escreve-se com acento agudo a palavra ‘á’ quando soa como vogal aberta, e tem esta pronúncia: 1.º, a contração da preposição ‘a’ com o artigo definido feminino; 2.º, a dita preposição, pura e simples, nas locuções adverbiais em que rege a um nome feminino, achando-se este no singular. Existem expressões em que o substantivo do gênero feminino usado no singular vem precedido de ‘a’ sem acento, sendo esta palavrinha o artigo, que soa como vogal fechada átona, fonema para o qual não há denotação especial na escrita. Expressões adverbiais desta categoria são ‘a primeira vez’, ‘a segunda vez’ e outras análogas, ‘a semana passada’, ‘a semana próxima’ e várias outras que o leitor conhece pela prática e de que há dizeres congêneres em idiomas estrangeiros” (pág. 9 da 3ª ed., Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1971).
Excepcionalmente encontra-se hoje quem condene como imitação do francês o emprego da preposição ‘a’, por ‘de’, em expressões adjetivas do tipo de “barco à vela”. Não se deve tratar de galicismo porque já de longe vem esta sintaxe, conforme atesta Camões, no século XVI: “bateis aa vela entravão e sayão” (“Os Lusíadas”, V, 75). No Poema grafava-se o ‘a’ aberto de vários modos, entre eles com ‘aa’ do exemplo. Como não se trata da crase, conforme já dissemos, há professores que defendem ser opcional o acento grave: “barco a vela” ou “barco à vela”. Se nas locuções adverbiais e adjetivas do tipo com substantivo feminino singular temos a pura preposição com acento grave, a coerência manda que permaneça o sinal gráfico: à força, à mão, à míngua, à toa, à pressa, à noite, à distância, etc.
O Dia (RJ), 22/1/2012