Em crônica da semana passada ("Previsões"), contei como conseguira prever a eleição do cardeal Albino Luciani para a sucessão do papa Paulo VI.
Um acaso: precisava encher de fotos seis páginas da revista "Manchete", a mídia mundial apontara seus favoritos e, como editor da matéria, eu tinha de dar destaque a um dos "papali" e fechei em cima do então patriarca de Veneza, que ninguém mencionara e que viria a ser João Paulo I.
Nenhuma sabedoria especial e muito menos nenhuma inspiração do Espírito Santo, que, segundo a tradição, ilumina os cardeais eleitores. Mas, na mesma crônica, fiz questão de confessar que nem sequer acertava no bicho que um contínuo da Redação recolhia todos os dias -ele ganhava comissão de um bicheiro que fazia ponto num botequim da praia do Russel.
Acontece que um colega daquele tempo me telefonou lembrando uma "previsão" que eu havia feito e dera certo. Foi no dia em que ganhei na Loteria Esportiva, que estava em seus começos, ali pela altura do 10º ou 11º concurso.
Naquela segunda-feira, eu precisava ir ao Galeão apanhar minha filha que vinha de Roma. Acordei muito cedo e, ao sair da minha garagem, vi no edifício ao lado um ponto que naquele momento recebia os novos cartões.
Uma caminhonete da Caixa Econômica estava fazendo a entrega dos talões para o próximo concurso. Eu pedi um cartão e fui para o Galeão, mais tarde para a Redação.
Escolhi um canto e marquei no meu cartão os jogos da semana entrante. Mas, como tinha o resultado dos jogos da véspera, marquei os furinhos respectivos do talão anterior.
Bem verdade que, encimando a tabela, havia a indicação do concurso, que era, como já disse, o 10º ou o 11º. Com displicência, joguei o meu cartão na roda que se formara no oitavo andar, onde o Alberto Carvalho, o Muggiati, o Zé Esmeraldo e o Ivan Alves estavam conferindo os cartões da turma.
Fui para o sexto andar abrir a minha Redação e esperei pelos acontecimentos. Cinco minutos depois, lívidos, engasgados de emoção, alguns colegas estavam à minha frente, afônicos, olhando-me com o respeito com que se olha o Taj Mahal ou a "Pietà" de Michelangelo.
Eu fizera os 13 pontos. Ninguém se interessou em ver a indicação de que o talão era dos jogos da véspera. Simplesmente verificavam os meus furinhos que coincidiam com os resultados verdadeiros.
Falando por todos, quem me deu a notícia foi o Roberto Muggiati. Eu estava milionário. Segundo o rádio que estava ligado, eu fora o único a acertar os 13 pontos. Recebi com humildade os cumprimentos, gente de todos os andares apareceu para me dar tapinhas nas costas, o próprio Adolpho Bloch, que ainda trabalhava na Frei Caneca, me deu os parabéns, achou justo o resultado e perguntou se eu podia ajudar no pagamento da próxima folha. Era início de mês e, como sempre, ele estava em "dificuldades".
Nisso, o rádio deu uma notícia que me destroçou. Uma velha de Niterói estava vindo de barca; ela também fizera os 13 pontos e vinha receber a bolada.
Confesso que odiei a velha, pedi ao Todo-Poderoso que a barca afundasse, não iria dividir meus milhões -e, ao mesmo tempo, a portaria avisou a minha secretária de que o pessoal de rádio, TV e imprensa estava querendo subir para me entrevistar. Naquele tempo, os ganhadores da Loteria Esportiva viravam celebridades fulminantes.
Além de milionário, eu me transformara numa celebridade.
Vendo o negócio tomar uma proporção inesperada, chamei o Muggiati a um canto e pedi que ele verificasse o talão, que só seria válido para a nova semana.
E que me poupasse o vexame de confessar a minha fraude. Na verdade, eu estava inocente, ao menos naquele lance.
A afobação fora dos outros. Durante o tempo em que durou o equívoco, eu ficara calado, modesto, dando a entender que estava envergonhado da sorte.
O Magalhães Jr. veio me perguntar o que eu faria com tanto dinheiro. Ele acabara de escrever uma comédia para a companhia da Alda Garrido, a produção estava sem patrocínio.
Uma estagiária cuja matéria eu recusara há tempos aproximou-se e declarou que a minha vitória era a maior injustiça do destino.
Folha de São Paulo, 13/1/2012