Li não sei onde que as autoridades responsáveis pelo tráfego aéreo decidiram diminuir o espaço entre os aviões em voos de carreira. Antes, a distância entre dois aparelhos devia ser de 15 milhas. Agora será de dez milhas, para facilitar a arrumação lá em cima e ganhar tempo na fila das chegadas. Não sei se estou certo ou se entendi errado. O fato é que o espaço lá em cima precisa de rigor, para efeito de navegação aérea. O céu não é o limite: há faixas congestionadas e atrasos cada vez mais frequentes.
Obrigado a apelar para o avião em várias circunstâncias, sempre me preocupei com esse tipo de problema. Cheguei mesmo a escrever um romance com um título que muita gente até hoje estranha: "Tijolo de Segurança". O próprio Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, que era a minha editora de então, não sabia o que era nem para que servia um tijolo de segurança.
Eu tinha lido numa revista técnica, publicada nos Estados Unidos, que os aviões em voo de carreira eram obrigados a manter uma distância de tantas milhas à esquerda e à direita, e outras tantas milhas em cima e embaixo, formando um quadrilátero espacial que garantiria a autonomia do aparelho. Era o "tijolo de segurança".
Transformei esse tijolo em metáfora. Cada um de nós ocupa um espaço irrelevante no universo físico, mas fundamental no espaço interior de nossas frustrações, pânicos, sonhos e esperanças. Podemos nos espremer numa fila, num estádio, dentro de um ônibus ou avião, mas cada um de nós precisa de um espaço para sermos nós mesmos, espaço pelo qual procuramos zelar para evitar tanto quanto possível os choques, as trombadas que podem nos ferir ou derrubar.
Seria o terceiro romance de minha participação no mercado editorial brasileiro; ganhou um prêmio, que era o maior daquele tempo, e teve várias reedições. Acontece que nunca dei muita bola para ele, pois estava obrigado a fazer um romance por ano, não tinha tempo nem vontade de acompanhar o que hoje se chama "fortuna crítica". Evidente que provocou resenhas ferozes e elogios afetuosos, mas eu já estava em outra, preparando o "Informação ao Crucificado", que me deu muito trabalho porque tinha um caráter de autobiografia.
Eis que, na semana passada, minha secretária descobre numa velha estante do meu gabinete o original desse romance, que eu julgava perdido nas mudanças que fiz pela vida afora.
Na última página, tem uma data: 4 de setembro de 1957. Como estou em tratamento que me obriga a ficar muito tempo deitado, espetado por algumas agulhas, um dia desses levei o original e comecei a ler.
Horror e mais horror! Tirante a história em si, que me pareceu boa (sou ruim de histórias, nunca dei bola para os enredos), o texto é lamentável. A começar pela forma de diário, tudo na primeira pessoa. Já publicara dois romances assim e, ao mandar o original para a editora, apelei para a terceira pessoa, o que em parte salvou alguma coisa, mas não o todo.
Fiz divagações imbecis; a maioria delas eu consegui eliminar na versão que foi publicada e que ganhou, como já disse, um prêmio importante na época. Mesmo assim, o primeiro jato saiu abominável. Há uma cena em que, perseguindo uma mulher casada que entrara na cobiça do personagem principal, ele foi parar numa sessão espírita. Fingindo-se possuído por uma entidade sacana, avançou em cima da mulher que estava acompanhada pelo marido. Deu merda total. A colisão não foi no espaço aéreo ou espiritual. Ficou registrada na 13ª Delegacia Policial, em forma de BO, boletim de ocorrência.
Em outra cena, essa inspirada num episódio real, o personagem estava bêbado e deu carona para um certo Tom, que era o próprio Jobim, que também estava acima do bem e do mal. Ali perto da praça Paris, bateram com o carro, um MG daqueles anos, pequenino, sem capota e quase sem freios. Deu merda também.
Mas a grande merda foi o original em si, todo ele. Se tivesse publicado aquela primeira versão, não haveria tijolo de segurança que me salvasse. Tenho uma geringonça que pica papel, reduzindo-o a uma pasta. Infelizmente, ainda não tenho nenhum equipamento que possa reduzir o autor a um farelo de nada.
Folha de São Paulo, 9/12/2011