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O sequestro da memória

 

Na semana da incontornável, e de há muito esperada, cerimônia do início da Comissão da Verdade, o silêncio a Vera Paiva, filha do ex-deputado Rubens Paiva, foi a nota dissonante do evento, para que se "evitasse constrangimento" aos comandantes militares ali presentes. E, contudo, é preciso registrar uma observação preciosa de Vera: "Se a Comissão da Verdade não tiver autonomia e soberania para investigar, e uma grande equipe que a auxilie em seu trabalho (...), seremos cúmplices do sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas por essa herança de horror que agora não está apoiada em leis de exceção, mas segue inquestionada nos fatos."

A visibilidade é um dos maiores atributos da república. E salvaguarda. Norberto Bobbio foi dos que mais criticaram o segredo nas ações do governo, porque a opacidade é essencialmente ilegítima na vida democrática. Para ele, a ideia de república implica o governo da coisa pública, tratada de forma pública, ou seja, de modo claro e manifesto. Onde houver zona de sombra não haverá liberdade. Um passado inabordável constitui afronta para a cidadania, porque a condição primeira do estado democrático repousa no exercício de um poder visível.

Na contramão das coisas claras, como bem lembra o advogado Marco Antônio Barbosa, presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, surge "a reivindicação" dolorosa, suspensa há décadas, "do direito milenar e sagrado da família de enterrar seus mortos". Situação insustentável, criada através de expedientes legalmente duvidosos ou eticamente questionáveis. 0 trabalho da Comissão preenche um vazio indiscutível, sem ódio ou revanchismo, empenhada em aprofundar as formas do jogo democrático. Momento decisivo na elaboração de mecanismos para a democratização da democracia. Não se trata de um confronto entre civis e militares, mas de se pôr fim ao sequestro da memória, em nome de uma "paz romana" injusta, disforme e insuficiente.

Resgatar os corpos perdidos é dever que se impõe. Assim como importa recuperar o corpo de uma democracia incompleta, cujas partes permanecem dispersas, até que não se atinja e se dissolva a herança da camada mais obscura do poder, definida por Bobbio como criptogoverno. Para o filósofo italiano é preciso atentar para a formação de um subgoverno, que trabalha na penumbra, e para outro, mais restrito e perigoso, que se move na perfeita escuridão. Para Bobbio, toda a democracia deve precaver-se, com disposição renovada, das forças políticas invisíveis, que operam dentro do Estado, contra ou a seu favor, no seio da ilegalidade, no cálculo das formas silenciosas e na trama complexa do segredo, criando um passivo nas instituições republicanas.

Bobbio destaca "A Paz perpétua", de Kant, quando se discute o acordo "possível" entre a política e a moral. O ensaio condena enfaticamente o segredo dos atos do governo e defende um conjunto de regras que obrigue o estado a prestar contas em público de suas decisões. Para o filósofo de Konigsberg, "todas as ações relativas aos direitos de outros homens, cuja máxima não seja compatível com a publicidade, são injustas."

Uma demanda de justiça e transparência deve imprimir força à Comissão da Verdade, que saberá ultrapassar ou transcender sua missão imediata e necessária, a de iluminar as lacunas de um passado recente, de que depende o futuro de uma democracia consensual,livres de zonas de silêncio ou de segredos, de mortos insepultos e fantasmas jurídicos.

Não será fácil descer ao inferno do criptogoverno, ao emaranhado de práticas escusas, às entranhas das razões de estado. Mas é preciso fazê-lo, intrépido, como Orfeu em busca de Eurídice, no seio da opacidade, para que ela volte a viver. Hoje, a delicada construção de nossa democracia depende do rosto de Eurídice, de que precisamos vivamente e de que temos saudade.

O Globo, 30/11/2011