Leitora indignada envia um e-mail contando que, com uma crise na região lombar, foi procurar um médico que lhe indicaram.
Pagou a consulta, esperou um tempão para ser atendida, até que a secretária pediu que ela entrasse. A cena que viu a horrorizou.
Sentado atrás da mesa, de jaleco imaculado, o médico tinha uma arma de ar comprimido e atirava contra umas pombas que beliscavam qualquer coisa no peitoril de sua janela, que dava para um parque, por sinal muito bonito.
Ela reclamou, e o médico garantiu que fazia o mesmo todos os dias; os pombos e as pombas que frequentavam sua janela eram aves daninhas, piores do que os ratos e as baratas, transmitiam várias doenças.
Declarou-se disposto a promover uma campanha, com passeatas e faixas pelas principais ruas de Copacabana, alertando o povo e o Senado romano ("senatus populusque romanus") a acabar com todos os pombos e pombas da cidade. Oswaldo Cruz fizera o mesmo com os ratos; ele se candidatava a deixar seu nome na história.
Livre das pombas, ele ficou livre da cliente, que, de repente, não sentiu mais a dor na região lombar, mas na alma, e preferiu ir embora; nem mesmo lhe devolveram o dinheiro da consulta.
Não sabendo o que fazer, pediu-me que fizesse alguma coisa a favor das pombas e contra o médico assassino. Que eu ao menos contasse o episódio para condenar a atitude do profissional de saúde e dos fabricantes de armas que disparam balas de chumbo. Faço-lhe a vontade e faço mais.
Deus é testemunha de que nada tenho contra as vacas, nem as de carne, osso e leite, nem contra essas esculturas de isopor espalhadas pela cidade a troco não sei de quê.
Sofro de torpor pastoral quando esbarro com uma vaca de verdade, mas nunca pensei em agredi-las.
Contudo, tenho um amigo que conta para todos uma história que se passou com ele. Se verdadeira ou não, fica a critério da boa ou da má-fé de cada um. Eu, pelo menos, acredito nele.
Ele tinha comprado um carro de segunda mão e foi visitar uns parentes em Paraíba do Sul. Deixou a estrada asfaltada e tomou um atalho precário, de terra batida, cheio de buracos e costelas.
Num solavanco inesperado, o motor pifou.
Ele tentou o arranque diversas vezes, até que sentiu o cheiro da gasolina, sinal de que o carro estava afogado. Deu um tempo, tentou outras vezes o arranque. Nada.
Embora nada entendesse de mecânica, fez o que achava de seu dever. Abriu o capô e ficou olhando aquelas peças -se estivesse admirando o Taj Mahal, daria no mesmo.
Nisso, ouviu uma voz meio rouca, parecida com a do Lula, que está em tratamento. A voz disse: "Aperte o cabo do acelerador!". Olhou em torno, não viu ninguém, apenas uma vaca que o observava com atenção.
Como não tinha mais nada a fazer, deu um aperto no tal cabo, voltou ao volante, tentou o arranque e -"miraculo"- o motor pegou de primeira.
Alarmado, continuou seu caminho. Quando chegou à casa dos parentes, esbaforido, pedindo um copo d'água para compensar seu pasmo, contou que enguiçara na estrada, mas uma vaca, com voz muito rouca, igual à do Lula, que felizmente vai ficar bom, aconselhou-o a mexer no acelerador.
Então havia disso em Paraíba do Sul, uma vaca que falava! Um dos parentes comentou com desprezo: "Foi chute, chute daquela vaca! Ela não entende nada de mecânica".
Por essa e por outras, apesar de sofrer o torpor pastoral, costumo respeitar vacas em geral, não pelos conselhos mecânicos que elas possam me dar, mas pelo leite e seus derivados, manteigas e queijos que guardam em seu ventres pançudos, "balaio de ervas" como as definiu um poeta.
Voltando aos pombos. E, por extensão, às pombas. Uma delas fez coisa mais aproveitável do que a vaca de Paraíba do Sul. Anunciou que o dilúvio acabara.
Não fosse essa pomba com seu ramo de oliveira, ainda estaríamos todos espremidos na arca de Noé. Junto a todos os animais da face da Terra, inclusive ao médico e à sua arma de ar comprimido.
Sem esquecer a vaca, que certamente daria boas dicas a Noé se acaso a arca enguiçasse.