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O abuso das algemas

 

Não acompanhei o caso da morte de Michael Jackson em seus detalhes, tampouco me emocionei com o resultado do julgamento do médico Conrad Murray na última segunda-feira.

Ele foi condenado em primeira instância porque estava ausente do quarto onde o cantor, já devidamente dopado, tomou uma overdose do remédio que o matou. Que houve culpa do médico é evidente: sabendo da situação, ele deveria estar junto ao leito do artista ou ter retirado o remédio de seu alcance.

Daí a acusação de homicídio culposo. Tudo bem, a justiça foi feita, pelo menos em sua primeira etapa. O que não compreendi foi o ritual dos guardas logo após a leitura da sentença: algemaram o médico.

Em nenhum momento ele ameaçou fugir, agredir quem quer que fosse, não tinha antecedentes criminais e estava sendo julgado por homicídio não qualificado, com direito a apelação.

Compreende-se a condenação, mas não a violência das algemas. Se mais tarde for absolvido, ele terá sido vítima de um ritual judiciário-policial, completamente desnecessário no caso dele.

Não sei por que me lembrei do acidente daquele avião da Air France que caiu no oceano Atlântico na rota Rio-Paris. O piloto estava fora da cabine na hora do perigo e, certamente, nada poderia ter feito para evitar o desastre, mas sua obrigação era estar no comando.

A tradição profissional, tanto dos comandantes como dos médicos, aconselha o responsável pelas emergências a permanecer em seus postos até que a crise passe ou tenha solução final.

No caso de Conrad Murray, ele acompanhava o cantor havia tempos, era de sua confiança. Não seria cúmplice de um suicídio assistido. Mas sua presença naquele quarto poderia ter impedido a overdose. De qualquer forma, mesmo condenado, não merecia as algemas.

Folha de São Paulo, 10/11/2011