Há quem defenda, com atraso de dois séculos, o fechamento da cultura brasileira, revogando a abertura dos portos da inteligência. E a pretexto de defender "nossa boa arte", pregam um estreitamento de fronteiras para impedir a "contaminação de culturas estranhas". Essa vigilância ideológica, que remonta ao paleolítico de uma visão comprometida, seria o anjo da absurda presunção de uma defesa geográfica. Anjo sem asas, com sotaque extremista e fixação identitária.
Se pleiteamos um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, temos de assumir uma liderança responsável na promoção de uma cultura do diálogo, de paz e justiça social, que nos leve a aprofundar um diálogo emancipado com o Ocidente. Menos commodities e mais atenção aos programas de pesquisa, intercâmbio e tradução. Aumento de bibliotecas físicas e virtuais em todo o país, em paralelo com a recorrente formação de leitores.
Semana passada, um seminário sobre a latinidade, realizado em Alba Iulia, na Romênia, trouxe ao debate as diferenças de uma herança latina permeável, que se estende do Atlântico ao Mar Negro. Longe de qualquer in-tegrismo, as conferências giravam em torno de uma latinidade mista, sem reivindicar traços de identidade redutivos, que impliquem revisão de fronteiras ou segregação de culturas. 0 seminário destacou o diálogo bissexto, que romenos e brasileiros realizaram século XX adentro, com um déficit importante para os dois extremos da latinidade. Se a Romênia perde a brisa do Atlântico, o Brasil não chega ao multiculturalismo dos Bálcãs. Eis o que se perde na balança cultural entre regiões de escassa comunicação.
As faculdades brasileiras mal oferecem, salvo episódios raros, um bacharelado em letras romenas. E bastaria um aceno para alcançar uma paisagem admirável, capaz de lançar luz sobre parte de nossa história, com uma quota de surpresa e trocas potenciais. Uma conversa entre Drummond e Sorescu, entre Geo Bogza e João Cabral não seria tempo perdido.
Partilhamos a herança de uma latinidade difusa. Darcy Ribeiro considerava o Rio como a Roma das Américas. E não errava. Uma Roma atravessada pelos fantasmas de Ovídio, indígena, africana e mestiça, a cujos desafios nossos poetas, romenos e brasileiros, procuram responder, com a riqueza de suas camadas culturais. Se a presença eslava empresta ricos matizes aos estratos da língua romena, permitindo-lhe delicadas saídas semânticas, também a nossa língua realiza um diálogo com o mundo árabe, o que nos dá uma gama de palavras bem interessantes.
0 romeno e o português possibilitam índices de absorção das diferenças, como faziam os antigos deuses latinos. Eis a razão pela qual o escritor Mircea Eliade traçou um paralelo entre Camões e Eminescu. Para ele, "Camões enriqueceu o mundo latino com paisagens marítimas, com flores estranhas, com belezas exóticas. Eminescu enriqueceu o mesmo mundo com uma novidade geográfica, a Dácia, e com novos mitos, de uma beleza estranha. Seus versos são acréscimos ao universo mental da latinidade". Gosto de levar "Os Lusíadas" para as águas do Mar Negro e "Os Argonautas", para o caminho das índias. Imagino Vasco da Gama com seus navios nas praias da Geórgia, enquanto vejo o Minotauro, à espera de Jasão, passeando pelos labirintos de Calicute.
Dessa navegação bizarra, surge um motivo a mais para que se compreenda a cultura brasileira como parte de certo Ocidente e não como um reino do Preste João, flutuando incerto, num espaço perdido e quase náufrago, à espera de um destino salvador. Temos raízes profundas, que ultrapassam uma presumida latinidade, a se espalhar por tempos e culturas que já nos pertencem de modo irrevogável.
Munidos de híbridas credenciais diplomáticas, aceitamos uma larga parcela de Ocidente, para um diálogo sensível, inquieto e aberto.